E se todo o mundo fosse apenas um quarto?
Texto: JOSÉ RAPOSO
O novo filme de Lenny Abrahamson, realizador que ainda não há muito tempo nos apresentou o universo musical e bizarro de Frank, adapta o romance homónimo de Emma Donoghue, centrado na história de Ma, uma jovem que foi raptada aos 17 anos e obrigada a viver em cativeiro desde então, e do seu filho Jack, fruto de relação forçada com o raptor. O romance, que chegou a ser considerado para o Booker Prize, parte da experiência subjetiva do mundo tal como apreendido por Jack, partindo dessa situação para um relato bastante intenso daquilo que será viver em condições absolutamente anormais. Não se trata apenas de encenar os espaços de uma intimidade tocante entre mãe e filho em função da trágica situação em que se encontram, mas sobretudo uma subtil e contida investigação sobre um doloroso processo de adaptação à vida que se estende para lá da prisão daquele espaço, a vida tal como nós a conhecemos.
Um dos aspetos centrais do romance, cuja adaptação para o grande ecrã ficou a cargo da própria Donoghue, prendia-se justamente com a capacidade de Jack em articular um sistema linguístico bastante próprio e singular, como se de facto o universo fosse sempre de um mistério infinito, por mais redutora e difícil que pudesse ser a circunstância do presente. O filme abre aliás com o pequeno Jack num estado de assombro perante os objetos que constituem a própria essência e os limites da sua existência. Há mesmo um animismo que parece estar sempre na fronteira do mundo da fantasia, mas que acaba por sublinhar a tal dimensão infinita (e por isso absurda) do mundo – não há na verdade um exterior ao qual se possa contrapor aquela existência, a vida está toda ali. Quarto é por isso também a história da passagem desse espaço contido para um exterior com novas possibilidades.
Predicado num maior distanciamento em relação ao ponto de vista subjetivo de Jack, o olhar cinematográfico de Abrahamson concentra a sua atenção nas nuances dessa transição, abrindo os horizontes de modo a traçar uma complexa relação entre mãe e filho. Nem sempre se mantém o equilíbrio entre o registo quase etnográfico dos rituais que uma vida naquelas condições obriga e um certo sentimentalismo, que apesar de nunca parecer forçado acaba por denunciar algum conformismo na aproximação a uma história “emotiva” ou “emocionalmente intensa” – repare-se aliás a este respeito na utilização bastante manipuladora da banda sonora. Abrahamson trabalha com alguma intensidade a textura do thriller que marca a primeira metade do filme, e a impressão com que se fica é de uma certa estranheza e desconforto. Não subverte o género, mas demonstra alguma habilidade na transposição desse código para outro contexto.
Quarto fixa uma imagem do amor apesar do trauma, graças às belíssimas interpretações dos protagonistas. Não será exagero afirmar que este é sobretudo um filme de atores, elogio maior para uma obra tão preocupada com as coisas do mundo.
“Quarto”
Realização: Lenny Abrahamson
Com: Brie Larson, Jacob Tremblay, Joan Allen, Sean Bridgers, William H. Macy

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