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Olhar a Rússia medieval contra o gosto comunista soviético

Texto: NUNO GALOPIM

O filme de 1966 “Andrei Rublev” abre hoje o ciclo que a Medeia Filmes apresenta, ao longo das próximas semanas, recordando a integral da obra do cineasta russo Andrei Tarkovsky.

Inspirado na figura real de Andrei Rublev (1370 – ca. 1428), conhecido pela sua pintura de ícones na Rússia do século XV, o filme – com argumento desenvolvido pelo próprio Andrei Tarkovsky, juntamente com Andrei Konchalovsky – não procura ser um bipoic do pintor, mas antes um conjunto de retratos que constroem uma visão realista sobre o quotidiano russo no seu tempo, distante por isso dos códigos “de época” muitas vezes empregues em filmes que olham o passado com objetos e roupas que parecem acabados de sair da loja e nos atores modos e gestos mais do nosso tempo que coisa de outras eras.

Os comportamentos, as manifestações de força dos que detém o poder e o seu relacionamento com o povo e, sobretudo, as representações da presença da fé no pensamento e nas formas de agir (algo que a figura de um pintor de ícones naturalmente potencia) são, mais do que uma trama “clássica”, os lugares vivos pelos quais a câmara lança um olhar sempre atento, sempre poético na composição tecnicamente irrepreensível, resultado de uma soberba direção de fotografia a preto e branco, assinada por Vadim Yusov, a cor surgindo apenas no Epílogo, para mostrar os ícones de Andrei Rublev.

Extenso (a versão original tem 205 minutos de duração), o filme é construído numa sucessão de episódios, cada qual bem indicado no tempo e no espaço, antecedidos por um Prólogo que nos coloca junto a uma igreja russa à beira de um rio, na alvorada do século XV, na iminência de um ensaio de voo com um balão, que termina com um despenhamento do tosco aparelho, ao que se segue um dos mais icónicos planos de toda a obra de Tarkovski, mostrando um cavalo a rebolar no chão, símbolo de vida.

Com um texto visível sobre a relação com a fé e com o jugo do poder autocrático (que então moldava as bases do que seria a futura Rússia czarista, mas que permite traçar eventuais pontes com vivências soviéticas recentes), o filme não conheceu inicialmente grande visibilidade local, para além de um visionamento em Moscovo em 1966, mais tarde sendo aí mostrada uma versão censurada. A grande visibilidade que conheceu (e que conferiu também à obra posterior do realizador) deve-se em grande parte a uma exibição, que acabaria premiada, na edição de 1969 do Festival de Cannes.

O tempo fez deste um dos títulos mais importantes da obra de Tarkovsky e um dos mais influentes, citado não apenas no seu próprio cinema (há por exemplo um ícone do pintor em Solaris), mas também por muitos outros. E em 2015, ao ver É Difícil Ser Um Deus, de Alexei German, não pude deixar de reconhecer naquela visão mais macabra e perturbante de um planeta alienígena a viver em clima medieval, uma descendência natural do modo como, em Andrei Rublev, Tarkovsky retratou as vivências do seu país, precisamente no final da Idade Média.

O filme é exibido no Espaço Nimas nos dias:

11 de fevereiro, quinta
12 de fevereiro, sexta
13 de fevereiro, sábado
28 de fevereiro, domingo
29 de fevereiro, segunda

sempre em sessões às 13.00, 17.00 e 21.00

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