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A adolescência enquanto epopeia emocional

Texto: DIOGO SENO

“Je me souviens”. “Eu lembro-me”. Assim começa “Três Recordações da Minha Juventude”, o filme de Desplechin, um mergulho na memória, uma biografia sentimental da adolescência de Paul Dedalus.

O filme, com direito a prólogo e epílogo, apresenta sobretudo três memórias, que se relacionam, e iluminam, num fôlego íntimo admirável, uma espécie de recordação da adolescência enquanto epopeia emocional. Quem lembra é um Paul adulto, confrontado com um duplo no outro lado do mundo, num momento em que começa a deixar de saber quem é. Este confronto leva Paul a recordar a sua infância na primeira memória e, de seguida, uma aventura pela URSS enquanto estudante do liceu, na companhia do seu melhor amigo. Se a infância instaura o filme no drama sussurrado, é por pouco tempo, pois a segunda memória leva-nos para o filme de espionagem. É de resto o fascínio primeiro de Desplechin, o dos artifícios narrativos, e o que dá ao seu filme um gosto decididamente romanesco. Mas não se trata apenas da “experimentação” com os géneros, da mistura de biografia com ficção, dos diálogos elaborados ou da estrutura da narrativa, mas sobretudo do sopro íntimo que passa em tudo isso.

A terceira memória, a mais longa do filme, a mais desenvolvida, para a qual as duas primeiras servem como pano de fundo (que ajuda a explicar a orgulhosa mas ferida independência de Paul), fixa Três Recordações da Minha Juventude no terreno do amor adolescente. Intitulada simplesmente “Esther” (o nome da amada de Paul), é o retrato de uma relação conturbada, explosiva, febril, como essas relações podem ser. Aqui o realizador afasta-se dos clichés sobre a adolescência para criar um retrato enérgico, sobre esse período. E se esta memória se estende aos irmãos e amigos de Paul, evocando os códigos deste mundo “à parte” dos adultos, vai progressivamente desviar-se para o casal enamorado. Impedidos por razões económicas de estar frequentemente juntos (Paul estuda na faculdade em Paris, Esther continua em Roubaix, a pequena localidade onde nasceram e se conheceram) estes dois adolescentes “possuídos”, alimentam o seu amor com cartas, encontros furtivos e chamadas telefónicas. Este desencontro, filtrado pela luz dourada da melancolia, atinge momentos de tristeza e beleza tais que se espera, a qualquer momento, que as personagens comecem a cantar a sua dor, como num filme de Jacques Demy. E, se não cantam, pelo menos falam directamente para a câmara, ou dão voz às cartas que escrevem, dirigindo-se em súplica ao ser amado, num gesto de cinema desarmante porque sincero, ainda para mais quando interpretado por actores jovens e talentosos como Quentin Dolmaire e Lou Roy-Lecollinet.

Filme inspirado e emocionante sobre a memória, em Três Recordações da Minha Juventude cada personagem, cada situação narrativa, são imbuídas do gosto pelo particular, pelo pormenor, como só um excelente cineasta, e um exímio contador de histórias, poderia criar.

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