Entre os desafios da ciência e os do mundo político
Texto: JOSÉ RAPOSO
Cosmonauts: birth of the space age, a exposição no Science Museum em Londres dedicada ao espírito de revolução e descoberta que tornou possível o programa espacial russo, juntou um conjunto importante de uma era em que a expansão pelo infinito do cosmos seria também uma forma de confrontar as dificuldades na vida da Terra. Artefactos como a nave lunar LK-3, um modelo do satélite Sputnik-3 ou a cápsula Vostok 6 que fez de Valentina Tereshkova a primeira mulher no espaço, expostos ao público pela primeira vez fora da Rússia, também permitiram ver um momento histórico profundamente marcado pelas circunstâncias políticas dominadas pela fraturante rivalidade entre a então URSS e os Estados Unidos da América.
Um dos aspetos mais impressionantes da exposição passa pela forma como é traçada uma perspectiva entre essa vocação em transcender os parâmetros da existência tal como a conhecemos, e a forma como as prioridades ditadas por um mapa político altamente instável acabam por influenciar fatalmente, ontem e hoje, os propósitos e o próprio alcance da ciência enquanto forma de conhecimento. A atenção dedicada à influência da figura de Nikolay Fedorov, fundador do Cosmismo, uma corrente filosófica com origens nos inícios do século XX que esboçou os contornos de uma existência utópica predicada na expansão pelo universo, é testemunho do alcance da chamada era espacial, que para todos os efeitos começou em 1957, ano de lançamento do Sputnik-1, o primeiro satélite a orbitar o planeta Terra. Se por um lado o sucesso do Sputnik-1 se deve à influência de pensadores como Fedorov, ou do legado cientifico de Konstantin Tsiolkovsky, um dos teóricos mais importantes da cosmonáutica, o que foi também decisivo para o seu lançamento foi o aperfeiçoamento de tecnologias com propósitos bélicos, no caso o desenvolvimento de um míssil intercontinental. No contexto da guerra-fria a capacidade de atingir alvos a enormes distâncias tornou-se um objetivo vital, e foi essa necessidade teve resposta no R-7, o primeiro míssil intercontinental. Obra de Sergei Korolev, o engenheiro-chefe do programa espacial soviético, o R-7 será readaptado para outras funções, tornando-se no foguete que irá levar ao espaço o Suptnik-1, ou as cápsulas Vostok 6 e Voshokd 1, ambas em lugar de destaque na exposição.
Num ensaio do catálogo que acompanha a exposição, Nataliya Koroleva, filha do engenheiro Sergei Korolev, dá conta da importância estratégica do R-7: “Este evento extraordinário [o primeiro lançamento a 21 de Agosto de 1957] foi altamente significativo, já que o alcance máximo do foguete era de 8000 km, o que queria dizer que nenhum país do mundo permaneceria imune a um ataque nuclear. A probabilidade de um contra-ataque fez com que muitos políticos ficassem mais prudentes. Cercar a URSS com aviões portadores de bombas atómicas deixou de fazer sentido. Desenvolver um míssil balístico intercontinental, contudo, fez mais do que reforçar o poder defensivo da URSS: tornou possível o lançamento do primeiro satélite artificial e, mais tarde, voos espaciais pilotados.”
Esta tensão é notada ao longo de toda a exposição, que nos mostra uma era espacial tal como aconteceu, mas também aquela que podia ter sido. A nave lunar LK-3 é o exemplo mais declarado dessa circunstância; pioneiros em muitas etapas da corrida espacial, os responsáveis pelo programa espacial russo acabaram mesmo por ser ultrapassados no desígnio de colocar o primeiro homem na Lua. Mantida em secreto durante anos, a LK-3 aqui exposta dá ainda assim conta do estado avançado em que o projecto se encontrava. Construída em 1969, trata-se de um modelo de uma nave que pretendia rivalizar com o programa Apollo, a iniciativa norte-americana que colocou o primeiro Homem na Lua. O programa lunar russo acabou por ser cancelado pouco depois da alunagem norte-americana.
Yuri Gagarin, o primeiro homem no espaço, é outra das figuras incontornáveis na história da era espacial. A 12 de abril de 1961 Gagarin voou cerca de 40000 km à volta da Terra a bordo da Vostok-1, tornando mais real a possibilidade de uma existência para lá da Terra, uma visão que ainda hoje dialoga com as visões mais utópicas da exploração espacial. Na exposição é nos recordada a visita da Gagarin ao Reino Unido, naquela que foi a sua primeira visita a um país fora do bloco soviético. As cápsulas que podemos ver na exposição, Vostok 6 (pilotada por Tereshkova) e Voshokd 1 (primeiro voo espacial com mais do que um astronauta: Vladimir Komarov, Konstantin Fektistov, e Boris Yogorov), são modelos mais aperfeiçoados da Vostok-1.
A exposição também apresenta pequenos objetos oriundos das mais diversas missões espaciais: fatos utilizados em missões históricas, os tabuleiros nos quais tomavam as refeições, consolas com as informações sobre o estado e condição das naves.
Ao reunir pela primeira vez no ocidente uma parte significativa da história moderna, Cosmonauts: birth of the space age procurou contribuir para uma discussão mais abrangente do sentido e das possibilidades da exploração do espaço. Sendo certo que o imaginário ocidental é em larga medida dominado pelo sucesso do programa espacial norte-americano, a importância que a cosmonáutica tem no contexto da cultura russa é absolutamente colossal. Mostrar tamanho legado a um publico pouco familiarizado com essa história é também expandir os horizontes da nossa imaginação.



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