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Uma revista de poesia (e não só)

Texto: HELENA BENTO

Assinalou-se mais um dia da poesia e tínhamos duas hipóteses: esquecê-lo, sabendo que ninguém nos condenaria por causa disso, ou lembrá-lo. Optámos pela segunda, dando destaque à revista literária “Apócrifa”.

Com prefácio do poeta, professor e ensaísta Manuel Gusmão e ilustrações de Adriana Santos, o mais recente número da revista de literatura Apócrifa já está disponível para venda. Depois de um terceira edição dedicada a Mário Cesariny e de uma quarta publicada por ocasião do centenário da revista Orpheu, fazendo-se ali a devida homenagem, a Apócrifa está de regresso com uma edição que privilegia sobretudo o poema. Beatriz de Almeida Rodrigues, Duarte Harris, Marta Esteves, Tristan A. Guimet, Vasco Macedo e André Alves foram os autores que contribuíram para esta 5ª edição.

Fundada em 2014 pelo defunto Colectivo Pré-Contemporâneo, a revista Apócrifa, atualmente dirigida por dois dos autores referidos, Beatriz e Vasco, dedica-se à publicação de textos inéditos de jovens autores, tanto poesia como prosa. Na página de Facebook da Apócrifa, ela é apresentada de forma menos categórica. “Cada edição é essencialmente, composta por textos que se poderão inserir na categoria do poema, da prosa poética e da crónica”.

O prefácio de Manuel Gusmão, autor de livros como Tatuagem & Palimpsesto e Pequeno Tratado das Figuras, não abusando do elogio nem parecendo ter sido escrito às três pancadas, antes generoso nas explicações e ligações para finalmente chegar, e chegar bem, ao que interessa, é um ótimo ponto de partida para os textos aqui publicados.

“Há cerca de quatro/cinco anos, interrogando-me sobre a situação contemporânea da poesia portuguesa, eu dava conta de que, sobretudo de forma mais nítida a partir daqueles poetas que publicavam os seus primeiros títulos na última década do século XX e na primeira do século seguinte, a poesia portuguesa entrava naquilo que eu começava por designar como uma praia temporal”, começa por dizer o poeta, para, linhas à frente, concluir. “Hoje, parece-me que sedutora embora, a imagem da praia temporal vinca excessivamente a acepção de paragem do tempo histórico. Vim a preferir uma outra imagem que mantém algo da geografia das águas. Falaria assim de uma foz em delta, onde há fluxos surpreendentes, para além do medido ciclo das marés e abruptos rochedos ou estranhas pedras, para além da extensão do areal. Os poetas aqui reunidos parecem constituir alguns desenhos desse delta das tradições”.

“Vozes submersas”,
de Beatriz de Almeida Rodrigues

a criança lançou uma pedra
e logo outra e outra e outra
e tanto repetiu na sua mente a palavra
que as pedras lançadas deixaram de ser pedras
transmutaram-se em pássaros cegos
que rasgam a matriz dos céus

há uma terra em que a fome deixou cicatrizes
e um legado de crianças opacas
que reconhecem a fragilidade íntima das pedras

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