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A Paixão, segundo Arvo Pärt

Texto: NUNO GALOPIM

Uma das primeiras obras terminadas por Arvo Pärt depois de abandonar a URSS, “Passio”, com base no “Evangelho Segundo São João”, é uma das liturgias corais mais aclamadas dos últimos 50 anos.

A celebração da Paixão de Cristo através da música tem em obras criadas nos últimos tempos exemplos de continuidade para uma narrativa que transporta ecos de há quase dois mil anos. Criações recentes, como La Pasion Segun San Marcos, de Osvaldo Golijov, Deus Passus de Wolfgang Rhim ou a mais recente The Passion According to the Other Mary de John Adams, procuraram caminhos de diálogo possível entre a herança bíblica e realidades do presente. Golijov expressa multiculturalidade (com geografia latino americana) e explora questões identitárias. Rhim reflete sobre as fontes de sofrimento do nosso tempo. E Adams procura um ponto de vista feminino, concedendo à mulher um outro peso de maior protagonismo na história que se evoca. Uma das mais célebres Paixões do último meio século, terminada em 1982 por Arvo Pärt, é talvez a que discograficamente mais atenções chamou entre as que surgiram entre finais do século XX e início do novo milénio.

O compositor tinha já consigo alguns esboços da obra quando deixou Estónia (então ainda parte da URSS) para de mudar para a Áustria, em 1980. Usando como texto os capítulos 18 e 19 do Evangelho Segundo São João, juntando ainda uma introdução e uma conclusão, Passio – que tem na verdade por título completo Passio Domini Nostri Jesu Christi secundum Joannem – usa vozes solistas, um coro, um órgão e apenas mais quatro instrumentos: um oboé, um fagote, um violino e um violoncelo. Musicalmente representa uma exploração numa obra de grande fôlego de uma composição minimalista, discreta, meditativa, que Pärt havia experimentado entre peças como Alina ou Spiegel im Spiegel, definindo um estilo ao qual chamou tintinabuli.

Mais do que promover uma cenografia para a evolução de uma narrativa, como sucede em muitas “Paixões” clássicas, Arvo Pärt procurou em Passio a construção de um clima emocional, ao contexto cabendo um papel na caracterização dos acontecimentos.

Passio teve uma primeira gravação em 1988 naquele que foi o terceiro disco nascido da ligação do compositor à editora ECM, após a estreia em Tabula Rasa (1984) e a Arbos (1987), que assinalara a primeira colaboração entre Arvo Pärt e o Hilliard Ensemble. O grupo vocal, que ao longo dos anos aprofundaria uma relação com a música de Pärt, teve em Passio uma presença fulcral, num registo dirigido por Paul Hillier e captado, sob produção de Manfred Eicher, na nave de uma igreja em Hampstead (há quem aponte a uma certa inadequação desta música às salas de concertos, precisamente pela afinidade para com as características acústicas mais favoráveis que encontramos nas igrejas).

Com o título Johannes Passion, o Condominium Choir, dirigido por Tauno Satomaa, a Finlandia Records lançou uma segunda gravação em 2001. Uma terceira surgiu em 2003 pela Naxos. Gravada na Abadia de Dorchester, tinha por maestro Antony Pitts e, como ensemble vocal, o Tonus Peregrinus.

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