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Fontaínhas em néon

Texto: ANDRÉ LOPES

A liberdade que se respira na temporada de música da Gulbenkian teve a 1 de abril um dos seus momentos mais vertiginosos. A obra de Pedro Costa fez-se cercar de uma nova dimensão, que deixou na sala uma saudade caprichosa pela sobriedade de outrora.

A presente temporada de música da Gulbenkian, que arrancou ainda em setembro do ano passado, tem procurado expressar um pertinente sentido de dialética com outros mundos que habitualmente não associamos ao a este contexto. A redução do número de recitais de canto e piano abre lugar a possibilidades mais abrangentes e – eventualmente – mais cativantes: em novembro de 2015, Rufus Wainwright apresentou árias da sua ópera Prima Donna com Joana Carneiro a dirigir a orquestra Gulbenkian. No mesmo mês, um programa com cantatas de Bach chegou a palco sob uma abordagem cénica diferente. Com a chegada do novo ano o cinema foi novamente chamado ao Grande Auditório da Fundação Gulbenkian com o primeiro dos filmes da trilogia O Senhor dos Anéis, projetado no grande ecrã, enquanto o Coro e a Orquestra Gulbenkian, bem como o Coro Infanto-Juvenil da Universidade de Lisboa, levavam ao palco uma interpretação ao vivo da banda sonora do filme, de facto originalmente pensada por Howard Shore como uma partitura operática.

Quando foi inicialmente vez apresentada a proposta para o serão de 1 de abril foi anunciada como um momento de colaboração entre o grupo Músicos do Tejo e o realizador Pedro Costa. Os primeiros musicariam ao vivo “um filme mudo”, propondo um diálogo entre a cinematografia do realizador português e obras de nomes como Bach, Schubert mas também Gil Scott-Heron. Aquilo a que pudemos há dias assistir no Grande Auditório, não poderá, contudo, ser visto como uma mera ocasião de encontro linear entre música e cinema. Tal como sugerido pela apresentação oficial escrita pelos Músicos do Tejo, talvez a expressão “momento artístico” seja bem mais fiel ao que ali aconteceu.

No palco escuro, sob a tela de projeção, esteve sempre presente uma parede cuja textura rugosa e orgânica nos remetia desde logo para o universo visual de Pedro Costa: não é difícil encontrar ali um eco visual extremado da viscosidade e corrosão presente nas paredes de No Quarto da Vanda. Ou, em alternativa, um dos muros das catacumbas das quais Ventura se liberta em Cavalo Dinheiro. Na tela de projeção, assistimos primeiro a planos que Orlando Ribeiro captou em 1951 para A erupção do vulcão da Ilha do Fogo. A rima é evidente, e pouco tarda até reencontrarmos imagens de A Casa de Lava, enquanto escutamos os 18 elementos dos Músicos do Tejo, que por esta altura se entrgavam à música de Henry Purcell e de John Dowland. Não os conseguimos ver, já que estão por detrás da parede no palco. À sua frente surgem figuras. Selma Uamusse, Anastácia Carvalho e Elizabeth Pinard são três cantoras africanas, todas elas unidas pela notável versatilidade de registo vocal. Nesta noite, ouvimo-las num registo próximo do canto lírico, enquanto personificavam as emigrantes de Cabo Verde que povoam vários dos filmes de Pedro Costa. Aqui vemo-las recém-chegadas, mais tarde com o uniforme de responsáveis de limpeza. Em palco, Costa Neto é quase onipresente durante todo o espetáculo: visualmente próximo de Ventura (figura central dos filmes Juventude em Marcha e Cavalo Dinheiro), é o interprete cuja voz ouvimos menos, mas a sua presença tem tanto impacto como a “personagem” que recria.

A interação entre todos é feita numa dinâmica quase operática, eventualmente quebrada pela incursão de alguns das músicos em palco em duas ocasiões. Na tela, seguem-se excertos e outtakes de todos os filmes de Pedro Costa que sucederam a O Sangue, numa modalidade que não atinge o patamar da celebração imponente, somente pela forma disruptiva com que o material visual inédito surge. Não em termos de forma, mas de conteúdo: localizações e décors que nos são familiares têm agora (ao invés dos seus habitantes verdadeiros) intérpretes como Fernando Guimarães, caracterizado como um residente do antigo bairro das Fontainhas. O tom é quase-lúdico, e incomoda grande parte da plateia. De Pedro Costa contamos com uma abordagem muito própria ao real, e às histórias desse mesmo real, de acordo com a perceção dos seus intervenientes diretos. Este grau de intervenção – de intrusão – por parte de alguém tão exterior como um cantor vencedor do Prémio Jovens Músicos da RDP em 2007, é para lá de postiço ou artificial, é incómodo. Algo de resto observável pelas reações e postura do público.

Felizmente, a execução musical é imaculada: Pieces of a Man de Gill Scott-Heron surge delicadamente integrada entre um excerto de uma obra de Bach e uma de William Lawes.

No final os aplausos são arrancados a custo, Pedro Costa sobe a palco para os agradecimentos e será eventualmente aqui que recebemos alguma prova sobre a sua implicação neste projeto, luminoso, mas com as falhas devidas. Porém, depois deste espetáculo há um sentimento muito concreto que prevalece: a relação de Pedro Costa com a Gulbenkian não é arbitrária; basta recordar os momentos de Juventude em Marcha em que Ventura nos conta sobre o seu trabalho na construção do Centro de Arte Moderna, para mais tarde ser expulso do museu enquanto se aproxima d’A Fuga para o Egipto de Rubens. Por isso, talvez esta tivesse sido uma rara ocasião de devolver a Gulbenkian ao povo que a construiu como Juventude em Marcha tão bem retrata. Talvez esta tivesse uma ocasião para celebrar um povo que estará para sempre perpetuado na cultura portuguesa por via dos filmes que Pedro Costa realizou entre 2000 e 2014. Não aconteceu de acordo com nenhuma destes possibilidades, pelo menos não de modo pleno, e isso deixa-nos uma noção muito agridoce sobre o sonho semi-pop em que esta noite acabou por se tornar.

1 Comment on Fontaínhas em néon

  1. O Senhor dos Anéis – A Irmandade do Anel: 4*

    Gostei bastante da história de “O Senhor dos Anéis – A Irmandade do Anel” e conseguiu cativar-me, o argumento de “The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring” estava bem construído e todas as personagens me cativaram à sua maneira.

    Cumprimentos, Frederico Daniel.

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