A dupla vida de Isabelle
Texto: NUNO CARVALHO
A dada altura do novo filme do norueguês Joachim Trier (o seu primeiro em língua inglesa e com atores de renome), a personagem de Isabelle Huppert, a matriarca de uma família de quatro elementos que desapareceu num trágico acidente de viação, expressa, numa meditação em off, a sua angústia deste modo: “Passados uns dias, sentes-te mais à vontade no teu papel. Até já nem é um papel, agrada-te. Eles querem-te aqui. Amam-te. Consegues senti-lo. E tu também os amas, mais do que tudo. Mas, mesmo assim, sentes-te a atrapalhar. Não fazes parte da rotina deles. Mais uma vez, tens a sensação de que estás no sítio errado. Não é que eles não te queiram aqui, mas… Eles não precisam realmente de ti.” É costume os psicólogos e psiquiatras descreverem uma pessoa deprimida como alguém que deseja desaparecer e fugir da sua vida, e é precisamente essa a realidade da personagem de Huppert, Isabelle Reed, uma premiada fotógrafa de guerra cuja família vem a descobrir que pôs termo à própria vida.
Se, como dizia Albert Camus, o único verdadeiro problema filosófico é o suicídio, então o tema da morte pelas próprias mãos será também um dos mais férteis para elaborações filosóficas e existenciais. E, tal como no seu filme anterior, Oslo, 31 de Agosto (2011), Joachim Trier retoma esse tema sombrio mas mais do que nunca na ordem do dia, tendo em conta que a depressão será a doença com mais prevalência no século XXI, com uma pulsão reflexiva e ruminativa que faz dele não só um “mestre da anomia moderna”, como lhe chamou Nick Roddick na Sight & Sound, mas também um autor marcadamente existencialista.
Porém, enquanto em Oslo, 31 de Agosto o tom era pesadamente desistente e solipsista (o que resultava num filme inapelavelmente deprimente e de um pessimismo mórbido), em Ensurdecedor há uma atmosfera melancólica mais diluída e matizada, não apenas porque a ação se situa maioritariamente num presente em que passaram três anos sobre a morte de Isabelle, mas ainda porque esse acontecimento fatídico acaba por (re)unir uma família estilhaçada e desmembrada em torno da evocação de memórias desordenadas e caóticas que há que condensar numa narrativa satisfatória que corresponda a um indispensável processo de luto.
A história do filme centra-se num momento de reunião familiar desencadeada pela organização de uma exposição em homenagem a Isabelle Reed, quando Jonah (Jesse Eisenberg), o filho mais velho, que foi viver com a mulher e acabou de ser pai, regressa temporariamente a casa, onde, juntamente com o pai, Gene (Gabriel Byrne) e o irmão adolescente, Conrad (o notável estreante Devin Druid), confrontam os diversos sentimentos e memórias que guardam de Isabelle, numa altura em que um seu colega de profissão (interpretado por David Strathairn) se prepara para publicar um artigo no The New York Times em que revela que a sua morte se tratou de um suicídio. Um suicídio que parece ter sido a “solução” encontrada para pôr fim ao “sofrimento ensurdecedor” que Isabelle vivia em virtude da sua dupla vida de fotógrafa famosa e prestigiada e mãe/mulher aparentemente falhada.
O título original do filme – Louder than Bombs – remete para o caráter ensurdecedor e insuportável da dor de se perder alguém que se ama e a infinita vulnerabilidade emocional que a saudade e a pena por essa ausência espalham no coração de quem sente mais do que ninguém a sua falta. Porém, em Ensurdecedor a sombra da morte não é propriamente como uma maré negra que espalha um negrume espesso e intoxicante no espírito da família enlutada, porque, ainda assim, os três elementos ainda se têm uns aos outros para mitigar a dor e se ampararem. O problema é que a morte e a depressão que ela instala criam uma alienação e um desânimo apático (sobretudo para quem não acredita numa vida além-túmulo) que nenhum abraço, palavra ou mesmo memória, por mais fortes que sejam, podem redimir. Porque, para os que não creem na ressurreição da alma, a morte de alguém querido não tem reparação possível. Resta o sortilégio da memória, a única forma de imortalidade num mundo sem transcendência.
Ensurdecedor
de Joachim Trier
com Isabelle Huppert, Gabriel Byrne, Jesse Eisenberg, Amy Ryan, David Strathairn, Devin Druid
Distribuição: Alambique

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