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“Pet Sounds”: uma visão com 50 anos

Texto: NUNO GALOPIM

Lançado a 16 de maio de 1966 (faz hoje meio século), o álbum “Pet Sounds” não só é a obra-prima dos Bach Boys como abriu caminho a uma outra forma de encarar o estúdio no processo criativo da música pop.

Em finais dos anos 50 os irmãos Wilson moravam numa casa (que seria demolida nos anos 80 para dar lugar a uma auto-estrada) em Hawthorne, uma zona suburbana de Los Angeles não muito longe do mar. Murray e Audree, os pais, gostavam ambos de música e encorajavam os filhos Brian, Dennis e Carl não apenas a cantar mas também a tocar instrumentos. Nessa época nenhum dos três fazia surf, nem sequer Dennis, que mais tarde seria praticante reconhecido de surf. Era nos filmes que apreendiam uma forma de retratar a Califórnia. E mal sabiam ainda que seriam uma força determinante para a fixação dessa ideia.

O ambiente familiar na casa dos Wilson estava contudo longe de ser idílico e o desejo de fuga de Brian era evidente, procurando um lugar de conforto pessoal, um “esconderijo”. E descobri-o na sua música. Como ele mesmo explicaria mais tarde, tinha a cabeça cheia de uma necessidade de “tirar uma má infância” do seu peito. Sentando-me ao piano tentava assim contrariar a realidade de uma vida em família disfuncional, bem diferente dos idílios de sol, festa e mar que se transformariam em hinos maiores da história da música pop.

A pré-história dos Beach Boys nasceu em casa. Os três irmãos partilhavam o mesmo quarto e, de noite, experimentavam harmonias vocais, já com Brian a dirigir as operações. Os cânticos nas noites de Natal fizeram com que aos três irmãos se juntasse o primo Mike Love. E o quinteto ficou concluído com Al Jardine, um colega de escola de Brian. Em setembro de 1961 Murray Wilson (o pai dos irmãos e primeiro manager da banda) levou os rapazes a um estúdio de gravação. Apresentaram-se como The Pendletones, mas ouviram o conselho do promotor da editora que lhes sugeriu que mudassem de nome. Um mês mais tarde, pela pequena Candix Records, era editado Surfin’, o primeiro single dos Beach Boys, que se afirma como um pequeno êxito local. E como a editora não quis um segundo disco, Murray visitou outros editores. Nick Venet, da Capitol Records, respondeu. Surfin’ Safari, em 1962, atinge o número 14 à escala nacional. Meses depois Surfin’ USA leva a vaga surf de costa a costa e coloca o grupo na linha da frente das atenções. De hino em hino, entre cenários com surf e carros, a primeira metade dos anos 60 faz deles um fenómeno que rapidamente vence até mesmo as fronteiras do país.

Um primeiro sinal de outras demandas (musicais e temáticas) surge discretamente num dos temas de Surfin’ Safari (1962). Lonely Sea, uma balada, traduz o primeiro instante em que a “emoção” se mostra como elemento central numa canção dos Beach Boys. A canção abria o caminho para In My Room (de Surfer Girl, editado em setembro de 1963), e todo um espaço de afirmação mais pessoal que Brian Wilson aprofundaria em The Beach Boys Today! (1965), que no fundo são antecedentes que prepararam a chegada de Pet Sounds, a obra-prima do grupo (1966). Entre as canções não havia apenas histórias de amor e romance, mas também ecos solidão e alienação.

Surfer Girl (1963) foi o primeiro álbum a apresentar na capa um crédito na produção para Brian Wilson, que era já o compositor principal do grupo, que começava já a sentir que a vida na estrada o afastava de focos de criatividade que lhe pareciam bem mais entusiasmantes. Faltava apenas um motivo ou um acontecimento para que essa divisão de águas acontecesse. Em dezembro de 1964 com os Beach Boys num avião, prestes a partir para o cumprimento de nova agenda de concertos, Brian Wilson cede de vez. E opta por regressar ao estúdio. Nesse ano tinham editado nesse ano Shut Down Volume 2All Summer Long (que incluía I Get Around, o seu primeiro número um nos EUA) e ainda um álbum com canções de Natal. Brian queria então focar a sua atenção noutros caminhos e desafios, imaginando uma nova etapa na vida musical do grupo. The Beach Boys Today! (lançado em março de 1965) revela já sinais de busca por um outro patamar de complexidade em canções com palavras mais pessoais e cenografias mais elaboradas e menos convencionais. Brian Wilson começa por esta altura a aprofundar o seu conhecimento técnico sobre as potencialidades do estúdio de gravação. Datam também desse período as suas primeiras experiências com drogas como o LSD, que alguns reconhecem como tendo desempenhado um papel importante no encontrar de uma certa coragem para tomar novos riscos em território claramente mais ousado e diferente. Ao mesmo tempo Brian Wilson começava então a desenvolver um interesse pela espiritualidade e pela transcendência aprofundou-se por esta altura. O agente Loren Schwartz tinha-o apresentado aos Byrds e a Van Dyke Parks e aos textos de Kahil Gibran, Herman Hesse, Saint-Exupéry. Em cena entra ainda uma cada vez mais notória admiração pelos Beatles. E a edição de Rubber Soul (1965), que ia bem para além do que a etapa da “british invasion” havia dado a escutar, sugeria novos patamares de desafio e estímulo. Brian era um grande admirava dos Beatles, mas reconhecia que eram diferentes dos Beach Boys. Chegou mesmo a comentar que por vezes simplificavam as ideias dos arranjos, pelo ele sentiria a necessidade de criar algo mais complexo. O desafio sugerido por Rubber Soul era contudo maior do que os anteriores… Era preciso subir a fasquia.

Em finais de 1965, com o grupo novamente na estrada Brian Wilson tem pela frente terreno livre para o seu maior desafio até então, olhando para o estúdio como um laboratório. Grande parte da etapa de composição decorreu entre dezembro de 1965 e janeiro de 1966, com as novas canções não só sugerir outros caminhos nas formas como nas palavras bem distantes dos sonhos de praia e sol de outros tempos. Nasce ali um ciclo concetual, focado sobre os dramas e ansiedades da transição da juventude para a vida adulta, os desafios do futuro e a natureza do amor… No fundo o sentido de coesão que encontarara em Rubber Soul estava a caminho de se materializar num disco dos Beach Boys.

Entre fevereiro e março grava os instrumentais, levando ao estúdio músicos que tinham trabalhado com Phil Spector. À sua experiência e à capacidade técnica juntou uma vontade ainda maior em experimentar, até mesmo fora dos cânones. O seu cão ouve-se em Caroline No e em Pet Sounds usa uma lata de Coca-Cola para definir o padrão rítmico. O controle pelo que ali acontece é total. O oposto do que conhece na sua vida pessoal. Mas das forças e ansiedades desses contrastes nasce um momento raro. E ímpar na história da música. Em palavras recordadas no booklet de uma caixa antológica sobre Pet Sounds Dennis Wilson reconhece ali o carácter profundamente pessoal que o disco representou para o irmão: “As pessoas achavam que o Brian era um tipo alegre até ele começar a editar aquelas canções mais pesadas, de busca pessoal, no Pet Sounds e por ali… Mas aquele material estava mais perto da sua personalidade e perceções.”

Como chegou a ser sugerido em várias frentes, Pet Sounds foi idealizado como um álbum a solo de Brian Wilson. Nenhum dos músicos da banda tocou instrumentos, a sua contribuição limitando-se à prestação vocal, sob a direção de Brian em sessões exaustivas, em busca de uma visão que o disco acabaria por materializar em pleno. Esteve contudo de ser um caso pacífico entre a banda. É sabido que Mike Love não gostou do rumo que a música e letras tinham tomado. E a editora chegou mesmo a lançar um best of por aquela altura, temendo o trambolhão nas vendas,

Pet Sounds esteve contudo longe de ser um desastre comercial. É certo que, a principio, não repetiu o patamar de vendas de álbuns anteriores. Mas nos EUA atingiu o top 10 e esteve 21 semanas entre os 40 mais vendidos. No Reino Unido vale ao grupo ser considerado a banda do ano pelo jornal de música NME, ultrapassando até mesmo os Beatles. E George Martin, produtor dos fab four, chegou mesmo a reconhecer que, sem Pet Sounds o álbum Sgt. Pepper “não teria acontecido”.

Um mês depois de Pet Sounds chegava aos escaparates Revolver, dos Beatles, numa altura em que Brian estava já a trabalhar num novo disco, que tinha como ponto de partida uma canção que não terminara a tempo de incluir em Pet Sounds. Finalmente concluída após seis meses de longas e intensas sessões de gravação e mistura, Good Vibrations é editada em single em outubro de 1966 e revela uma visão ainda mais complexa e desafiante. É uma canção em várias partes, invulgar, mas capaz de seduzir tudo e todos, tanto que lhes dá um número um nos dois lados do Atlântico.

Brian sonha então em ir ainda mais longe na exploração da potencialidade  das novas técnicas de trabalho e com elas criar uma “sinfonia juvenil para Deus”… A sua ideia era a de procurar caminhos que transcendiam as fronteiras mais habituais da canção pop e para a escrita das letras conta desta vez com Van Dyke Parks. Os resultados de Good Vibrations levaram a editora a agendar a edição do álbum para a quadra natalícia. Mas 1966 chega ao fim e o álbum (com o título de trabalho Smile). Em fevereiro os Beatles lançam Strawberry Fields Forever e Brian escuta a canção com desalento, csentindo que os fab four tinham chegado antes ao lugar onde desejava levar a sua música. Em estúdio sucedem-se episódios de comportamento errático e chega a julgar que a suite Fire está inclusivamente a causar fogos na cidade.

A relação do resto do grupo com Van Dyke Parks não era de todo pacífica. Além tensão e pressão que as datas e os sucessivos adiamentos implicaram, há que ter em conta neste quadro disfuncional um processo judicial que então o grupo colocou contra a editora e que tornou ainda mais hostil o cenário. Brian, que temia a hipótese de que o álbum acabasse simplesmente por não ser editado, não resistiu à carga que o atormentava e colapsou. O disco acabou mesmo por ser cancelado, em seu lugar surgindo, com apenas alguns momentos das sessões, o inconsequente Smiley Smile, que passou longe das atenções.

Smile ficou esquecido durante quase 40 anos, apesar de algumas das canções terem sido entretanto reutilizadas em discos dos Beach Boys. Não faltaram também bootlegs que o tentaram reconstruir. A reposição da verdade dos factos caberia ao próprio Brian que, em 2004, o regrava a solo, apresentando-o como Brian Wilson Presents Smile. Em 2011 uma reconstrução do álbum surgiu em The Smile Sessions, que juntava alguns outros elementos dessas míticas sessões.

Vale a pena lembrar que a vida dos Beach Boys não terminou ali e que, não só voltaram a ter alguns momentos de sucesso – embora sem o impacte de outrora – e que em discos como Friends (1968), Sunflower (1970), Surf’s Up (1971) ou 15 Big Ones (1975, e o disco que assinala o regresso à produção de Brian Wilson) ou nas obras a solo de Dennis Wilson e Brian há momentos fundamentais para fazer um retrato do que de melhor há na obra do grupo e seus músicos e de uma narrativa que não se esgota, de todo, na praia e no surf.

 

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