Alquimia da dor
Texto: NUNO CARVALHO
Não ser compreendido é difícil, e uma das condições que mais se prestam a equívocos e mal-entendidos é a doença mental. Muitas vezes vistas de forma preconceituosa (e atribuindo a “falhas de caráter” atitudes que em vários casos derivam de disfunções ou incapacidades psicológicas), as pessoas que sofrem de alguma forma de doença psíquica deparam-se frequentemente com a solidão da rejeição, até por parte de profissionais de saúde. No caso da personagem epónima de Olive Kitteridge – minissérie de quatro episódios realizada por Lisa Cholodenko para o HBO –, interpretada por Frances McDormand, essa “doença” toma a forma de uma espécie de obstipação emocional, talvez misturada com um certo grau de distimia (uma forma de depressão ligeira mas crónica). Na verdade, embora Olive não seja propriamente o tipo de pessoa que tem um coração mole mas afeta um ar rígido e cara de poucos amigos, também não é má pessoa nem desumana (talvez seja, isso sim, alguém endurecido pela agreste condição hereditária que a aflige, que, embora não configurando uma patologia no verdadeiro sentido da palavra, resulta num modo de ser difícil, apesar de temperado a espaços com um sentido de humor que é como uma espécie de relâmpago no céu de chumbo da sua aparente sisudez).
Por constraste compensatório, o marido de Olive, Henry (Richard Jenkins), dono de uma farmácia, tem um coração mole e uma grande paciência para aturar o humor disfórico da mulher, apesar de a dada altura se envolver afetivamente com uma jovem ajudante carente e ingénua. Ambos têm um filho, Christopher (Devin Druid/John Gallagher Jr.), vivem numa pequena povoação costeira do Maine, e o primeiro episódio abre com uma cena em que vemos Olive a apontar uma pistola à cabeça, sozinha no meio de um bosque, após a qual a ação recua 25 anos para contar a história do que se passou até àquele clímax ominoso que pode afinal não se revelar assim tão assustador. Dividido em quatro partes que correspondem a cada um dos episódios e se situam em tempos distintos, Olive Kitteridge começa por apresentar as personagens centrais e caraterizá-las através da sua vivência diária. Olive é professora do ensino secundário mas o foco da atenção da câmara de Cholodenko centra-se essencialmente na vida familiar e na forma como esta mulher “contraditória e impossível” lida com o fardo de uma personalidade um tanto penosa, até para si mesma (embora não seja o tipo de pessoa autocomplacente, sentimos que Olive parece, por vezes, ter pena de ser como é e de não ser bem capaz de fazer os outros felizes, tendo em conta que a nossa felicidade consiste acima de tudo em fazer a felicidade dos outros).
Adaptação do romance vencedor de um Prémio Pulitzer da autoria de Elizabeth Strout, Olive Kitteridge é surpreendente no modo como trata o tema da depressão sem nunca ser deprimente ou aborrecida. É necessário talento para fazer essa espécie de alquimia da dor e não dar ao espectador uma chumbada insuportável. E Lisa Cholodenko prova que é uma realizadora talentosa (já havia mostrado que tem mão para o cinema em Os Miúdos Estão Bem, mas Olive Kitteridge é ainda melhor). De resto, a qualidade da série está também apoiada na excelência de um elenco encabeçado pela estupenda Frances McDormand e secundado por nomes como Jenkins ou Bill Murray (no papel de um republicano viúvo e desavindo da filha lésbica, que Olive conhece já numa fase de velhice e solidão, e com quem sente afinidade, por também ela estar afastada do filho, que a culpabiliza por ser como é, açulado pelas convenientes teorias da psicologia que mandam culpar os pais por todos os males dos filhos, e talvez sem perceber que o único caminho para se libertar da sua neurose é o do perdão). Cabe ainda uma palavra para a atmosférica direção de fotografia de Frederick Elmes (responsável pela imagem de algumas das obras-primas de David Lynch, como Veludo Azul ou Uma História Simples).
Olive Kitteridge
De Lisa Cholodenko
Com Frances McDormand, Richard Jenkins, Bill Murray, Peter Mullan, Rosemarie DeWitt, John Gallagher Jr., Zoe Kazan, Brady Corbet, Devin Druid, Ann Dowd, Martha Wainwright
DVD/NOS Audiovisuais



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