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1981. Usar a controvérsia ao serviço de uma identidade

Texto: NUNO GALOPIM

Política, religião e sexualidade passam pelas canções de “Controversy”, o álbum de 1981 no qual Prince continuou a explorar os ventos da new wave e a presença dos sintetizadores, criando uma voz que era já então única.

Apesar do reconhecimento crítico e do crescimento nas vendas que Dirty Mind tinha trazido em 1980 os tempos que se seguiram ao lançamento do álbum foram vividos entre uma fúria de criatividade e uma sucessão de desentendimentos com os músicos ao seu redor, obrigando-o a refazer, aos poucos, a equipa que com ele poderia partilhar o palco. Isto numa altura em que, finda uma nova digressão, Prince encontrou um ritmo de trabalho de rara intensidade, dividindo as horas “de expediente” entre o trabalho com o projeto paralelo (e semiautónomo) The Time e os ensaios com os seus músicos, passando depois a noite a trabalhar, sozinho, nas canções para um quarto álbum.

Terminado o primeiro acordo com a Warner (que previa os três primeiros álbuns), renovou o relacionamento com a editora num momento em que sentiu um cada vez maior interesse em levar a sua música para além dos espaços do funk e dos demais universos de genética R&B em que iniciara o seu percurso. E se Dirty Mind já havia revelado sinais evidentes de um interesse pelos ecos da new wave, os trabalhos em curso rumo ao quarto álbum juntariam a uma nova expressão dessa mesma curiosidade uma vontade em aprofundar o trabalho com os sintetizadores.

Controversy, que editou em outubro de 1981, é na verdade mais um disco de transição do que um momento de chegada a um destino desejado, preparando contudo o terreno para o salto que chegaria, um ano depois, em 1999, cuja sonoridade (sobretudo na relação das electrónicas com as guitarras e todo um pensamento melodista atento às lições da pop) se indicia já em canções como Private Joy ou Jack U Off, esta última traduzindo igualmente uma forma muito peculiar (e pessoal) de assimilar e transformar heranças musicais do rock’n’roll mais clássico, projetando-as num festim libidinoso onde a luz chega também pelas teclas.

Se Let’s Work mantém firme a relação primordial com o funk e Do Me, Baby, uma inalterada proximidade com a essência de caminhos R&B em hora de criar mais uma grande balada, já em Sexuality é reforçado o desejo de diálogo com os novos ventos new wave, cabendo depois a Ronnie Talk To Russia (uma canção política, com um discurso de amplitude global apontado ao momento de tensão que se viva entre o Leste e o Oeste) e Annie Christian (que referia a necessidade de controle no acesso às armas) serem os polos mais experimentais e esteticamente ousados de todo o alinhamento.

Cabe contudo ao tema-título a memória mais marcante deste disco. Tal como o fora a canção que dava título a Dirty Mind, esta era mais uma incursão transformadora sobre o funk, refletindo um cada vez mais profundo papel das teclas na construção de uma identidade que fazia já então de Prince uma voz única. A canção vive liricamente de uma série de olhares que questionam a identidade do próprio Prince, deixando sem resposta as dúvidas que a sua música, imagem e presença levantam em relação à sexualidade ou religião. Tal como no Bowie de 70 o jogo das ambiguidades abria aqui outros horizontes à música (e à imagem). Atento, Prince compreendeu o potencial que tinha pela frente. E não tardou em procurar ir mais longe.

O disco, que acaba de conhecer reedição em vinil, foi também o primeiro na qual a cor roxa surgiu pela primeira vez numa capa de Prince.

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