A etapa esquecida na obra dos Ultravox
Texto: NUNO GALOPIM
É frequente vermos descrita como “clássica” a formação dos Ultravox que juntou Midge Ure, Warren Cann, Chris Cross e Billy Currie, que editou discos entre 1980 e 1987 e se juntou novamente em 2008 (tendo entretanto acrescentado já mais um título à sua discografia de estúdio). Essa foi de facto a que não só assinou a mais extensa etapa discografia do grupo, como aquela que gerou os álbuns e singles que lhes deram uma sucessão de êxitos de dimensão internacional. Há contudo um antes e um depois. E se no período posterior a U-Vox (1986), o álbum (menor) que assinalou o início do desmembrar da formação “clássica”, a agenda na verdade nada mais relevante acrescentou à obra do grupo – mesmo tendo havido a dada altura novo vocalista e novos discos – é contudo na etapa que antecede Vienna (1980) que reside um corpo de acontecimentos que merecem ser alvo da atenção da nossa memória. Até porque, entre dois dos álbuns editados nesse período surgem, ao lado de Vienna e Rage In Eden, os registos das melhores colheitas de toda a obra do grupo.
Há, na primeira fase da vida dos Ultravox, uma voz e uma alma dominantes. John Foxx (de seu real nome Dennis Leigh) estava a bordo desde o início e era quem tinha então o leme nas mãos. Antigo aluno de uma escola de artes, começou por formar os Tiger Lilly em 1974, nos quais contava com Warren Cann como baterista e Billy Currie como violinista. Quis a seleção (natural) destas coisas que a banda tivesse via curta, de alguns dos seus músicos (os três referidos) surgindo um núcleo que, juntando o teclista Billy Currie e o guitarrista Stevie Shears, encetou o trabalho sob novas coordenadas, mas ainda sem nome. As canções mostravam heranças de ecos do glam rock, contudo procuravam novos desafios art rock, assimilando sobretudo ideias do emergente krautrock e procurando temas assombrados, distópicos, futuristas… Acabaram por se chamar Ultravox a partir de 1976 e estrearam-se meses depois (já em 1977) um belo álbum de estreia que, não só representou uma das primeiras experiências de Brian Eno na produção, como definiu um dos primeiros episódios na invenção de novos caminhos pop/rock que, nos anos seguintes, assistiriam a uma progressiva presença dos sintetizadores junto dos mais clássicos trios elétricos.
Ultravox! (1977) é um disco algo atípico para os cenários de 1976 que o viram nascer. Não segue os caminhos do punk, apesar de traduzir um sentido de liberdade formal que estava na ordem do dia. Não mora entre a legião de criadores de um rock mais elaborado que então vivia dias de expressão significativa. É um alienígena revelando em canções como I Want To Be a Machine (sobre uma ideia de vida sem emoções, e usando códigos que só dois anos depois os Kraftwerk transformariam em canções) ou o visionário My Sex, uma das primeiras canções pop essencialmente feitas com electrónicas sinais de ousadia e grande visão que, na verdade, nem todo o alinhamento traduzia no mesmo sentido. Dangerous Rhythm, escolhido como single, traduzia uma curiosidade pelas dinâmicas rítmicas do reggae (que curiosamente os contemporâneos Japan explorariam pouco depois) que não teria depois outras materializações na obra do grupo. Este é, mesmo assim, o melhor álbum que o grupo edita na etapa em que John Foxx ali está como a sua principal força motriz.
O passo seguinte, ainda em 1977, chegou na forma de Ha Ha Ha, álbum com mais evidente deslocação das prioridades para os ingredientes rock’n’roll e que, não fosse o tema que encerra o alinhamento, seria um absoluto passo atrás. A fechar o lado B o belíssimo Hiroxima Mon Amour retoma a “história” (musical) onde My Sex deixara os Ultravox alguns meses antes, sugerindo novamente uma visão pop dominada por sintetizadores e um novo sentido de melancolia de travo sci-fi que revela paisagens novas a explorar. Felizmente uns metros de marcha-atrás permitiram aos Ultravox repensar o seu caminho depois do relativamente inconsequente álbum de 1977 e, no ano seguinte, em Systems of Romance, influenciado por caminhos recentes de David Bowie, Brian Eno, Bryan Ferry, e em consonância com os Tubeway Army (de Gary Numan), encontramos, sobretudo em canções como Quiet Man, Maximum Acceleration ou Slow Motion, primeiros sinais do que seria o som abraçado pelos new romantics e outros militantes da geração new wave pouco depois. Já no sombrio Dislocation há sinais de trilhos mais sombrios que abriam espaço ao terreno cold wave que teria, em breve, John Foxx (a solo) como um dos seus protagonistas.
Apesar dos feitos estéticos, o trio de álbuns editados entre 1976 e 1978 foram um tiro ao lado na relação com o mercado. E depois de falhada uma tentativa de levar o grupo ao mercado americano, a Island fechou a porta, apresentando como capítulo final a antologia Three Into One...
A inexistência de resultados materiais, somada às tensões internas, teve como consequência uma separação, cada qual seguindo o seu caminho. E do encontro de Billy Currie com Midge Ure nos Visage, projeto de Steve Strange e Rusty Egan no qual ambos então colaboravam, surgiu o elemento catalisador de uma reunião dos músicos que, em 1980, estreavam em Vienna uma nova formação da banda, ao mesmo tempo que, com Metamatic (e mais fiel aos destinos sugeridos por caminhos levantados em Systems of Romance) editada o seu primeiro álbum a solo.
A caixa The Island Years, que surge em tempo de assinalar os 40 anos dos Ultravox recorda toda esta etapa, juntando os álbuns Ultravox!, Ha Ha Ha e Systems of Romance (nos seus alinhamentos originais, mas com som remasterizado), acrescentando um quarto disco (a que chamam Rare Retro), que junta temas dos singles desta etapa, gravações ao vivo (uma delas editadas num EP de 1978), sessões na BBC (com John Peel) e atuações inéditas no Old Grey Whistle Test. Tudo isto, mais um booklet com um novo ensaio de David Buckley, faz desta caixa um belo retrato de uma etapa menos visível, mas na verdade bem interessante, de uma banda da qual muitas vezes só se conhece o que fez nos anos 80.
Ultravox
“The Island Years”
Caixa de 4 CD, Island / Universal
★★★★
![Ultravox [1977.08.27] Reading Festival - Back Cover](https://maquinadeescrever.org/wp-content/uploads/2016/06/ultravox-1977-08-27-reading-festival-back-cover-e1466161165849.jpg?w=620&h=264&crop=1)

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