A amizade, a lei e a vingança
Texto: RUI ALVES DE SOUSA
Nos anos 50, o western não era um “fenómeno” de Hollywood, como os escassos exemplos do género que hoje se estreiam entre nós e que ganham, com isso, o estatuto de “evento especial” (os dois últimos Tarantinos são prova disso). Os filmes de “coboiada”, como são estereotipadamente designados pela maioria da população, foram uma constante ao longo de décadas, evoluindo, em muitos casos, para algo mais do que simples filmes de acção a alta velocidade, com cavalos, índios, xerifes e toda a parafernália que hoje associamos a esse universo visual (nem que seja por termos lido apenas as histórias de Lucky Luke!).
Para essa transformação foi necessária uma série de realizadores que trouxeram vanguardas a um género que parecia simplório e repetitivo. O western ganhou o estatuto de arte graças a realizadores que o reinventaram: John Ford, Anthony Mann e Howard Hawks são exemplos desse “núcleo duro” do western clássico americano, que nos trouxeram obras primas inesquecíveis que dão a volta ao cliché da “coboiada” e criam histórias psicologicamente densas, onde o destino de todos os homens parece estar muitas vezes encabeçado nestas ficções com poucos heróis e muitas incertezas.
John Sturges é um cineasta devidamente apreciado pelos especialistas, mas que raramente é colocado na mesma “prateleira” dos seus congéneres clássicos. Mas O Último Comboio de Gun Hill justifica o lado erróneo de tal injustiça canónica. Trata-se de um filme com características clássicas perfeitas, que conjuga uma história filosófica, em que o bem e o mal nunca têm características muito definidas (mas bastante subtis, quando as encontramos). No que podia ser uma simples jornada de vingança, Sturges filma, em vez disso, um drama que põe em confronto os valores mais básicos da experiência humana.
Depois de A Conspiração do Silêncio, Sturges assina aqui uma outra obra-prima da tensão em formato western, e não deixam de ser notórias as semelhanças temáticas e psicológicas entre as duas histórias. O outro filme, interpretado por Spencer Tracy, tem, no entanto, um cariz mais intimista e, como o próprio nome indica, silencioso (mas um silêncio que pode esconder vários perigos fatais), o que se revela na notável desconstrução da opressão produzida pelo meio em que o protagonista se encontra.
Já em O Último Comboio de Gun Hill, o que não falta é barulho e destruição (não só das almas dos homens, como também do ambiente em que se encontram). As diferenças estilísticas, temporais e espaciais acentuadas não dificultam a perceção do olhar simbólico e metafórico que emana nos filmes: os dois retratam a condição humana em situações extremas de adversidade, em que o poder social está acima do bom senso.
Tracy era um forasteiro que chegava a uma cidade perdida no meio do nada e com um passado obscuro, provando os dissabores violentos daqueles que querem manter os segredos terríveis daquele lugar no segredo dos deuses. Kirk Douglas (num dos papéis mais brilhantes da sua vida) é aqui um “U.S. Marshall” que vai até outra cidade para se vingar daqueles que mataram a sua mulher. A densidade psicológica é aqui outra: o protagonista terá de enfrentar o seu melhor amigo Craig Belder (Anthony Quinn), cujo filho foi responsável por tão impiedoso crime. A cidade inteira, com medo de perder o apoio logístico que Belder presta ao comércio local, não irá mexer um dedo para ajudar Douglas, o que mostra que, no Velho Oeste (e infelizmente, na contemporaneidade), o crime de um homem não será contestado se ele estiver rodeado dos “big shots” que lideram a vida pública como se fossem reis.
O dilema moral instala-se. Entre a amizade, a honra, o dever e o instinto, John Sturges cria, ao longo de uma hora e trinta minutos de tensão, uma narrativa que se desenvolve numa estrutura simples, mas com sequências tão fortes e tão bem filmadas que é impossível que o espectador não se sinta envolvido na busca de Douglas – uma busca pelo culpado da destruição da sua vida familiar, uma busca pelo exercício da lei contra todos aqueles que querem deitar abaixo as suas convicções, e uma busca por si próprio, agora que está perdido e tenta lutar sozinho contra uma cidade inteira.
De cobardia fala este filme, e o outro também. E da supremacia do indivíduo face ao coletivo irracional que o circunda. Apesar dos dois filmes valerem por si próprios (e O Último Comboio de Gun Hill é sem dúvida um pouco superior em relação ao outro), recomendamos o visionamento de ambos, em double bill, o que poderá ser uma experiência curiosa e fascinante – e para tal, vale a pena dizer que faz falta a presença da edição DVD de A Conspiração do Silêncio nos escaparates das lojas da especialidade.
O Último Comboio de Gun Hill é a eterna luta entre a justiça e as armadilhas que a definem, encabeçada por um par de excelentes atores e uma série de grandes personagens secundárias, com uma câmara cuidada que equilibra o poder visual da história com os seus pressupostos psicológicos. Um filme com quase seis décadas de vida, mas que se mantém perfeitamente relevante, imprevisível, extraordinário e moderno.
“O Último Comboio de Gun Hill”
Last Train From Gun Hill (1959)
Realizador: John Sturges
Elenco: Kirk Douglas, Anthony Quinn, Carolyn Jones
★★★★★


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