A arca francesa
Texto: NUNO GALOPIM
Há 13 anos Alexander Sokurov caminhou, num único plano de cerca de hora e meia de duração, entre as salas e corredores do Hermitage, em São Petersburgo, num percurso pelo qual a câmara ia encontrando personagens e situações que evocavam episódios da história da Rússia, daquele palácio e do museu que nele há muito habita. Francofonia é um primo muito próximo desse magnífico A Arca Russa, tantas vezes mais evocado pelo dispositivo formal e pelos feitos de produção do que pelas suas qualidades narrativas e ideias que refletia. Tal como aí era o Hermitage o centro da ação, agora temos como espaço central o Louvre, em torno do qual se desenha um conjunto de olhares que usam como cenário ou símbolo (de expressão de poder e de cultura) o antigo palácio, que desde os tempos da revolução passou também a ser museu. Embora com um dispositivo formal diferente (há planos e uma montagem a arrumar a sua sequência), Francofonia, tal como A Arca Russa, é sobretudo um espaço de reflexão sobre episódios da história (evocando sobretudo os dias da II Guerra Mundial e os da Revolução Francesa e do império que se lhe seguiu). Mas junta, ocasionalmente, a desconcertante presença de um outro tempo e de outro lugar: a do presente, no apartamento onde vive Sokurov, tornando parte do filme a história de si mesmo. E olhando as imagens e comunicações com um navio de carga em alto-mar como expressão visual possível da aventura que foi levar tantas antiguidades dos seus lugares de origem para aquele edifício no coração de Paris.
Se a ideia da diluição entre as linguagens da ficção e as do documentário é questão na ordem do dia, então Francofonia será um dos exemplos maiores de como ambas se podem unir para contar uma história. A do Louvre. Que é também a de Paris. E ainda a da defesa do património (e é impossível olhar aqueles planos nas salas habitadas por frisos e estátuas monumentais da velha Assíria sem sentir no ecrã o ressoar dos crimes patrimoniais que têm feito notícia nos últimos anos).
A chegada dos alemães a Paris em 1940 e o confronto com um Louvre despido da esmagadora maioria das suas coleções – tinham sido retiradas no alvor da guerra, e guardadas em caves em diversos castelos franceses – lançam-nos numa viagem no tempo através dos espaços do Louvre, das fundações do velho castelo medieval à grande galeria, confrontando antigas representações pintadas, imagens atuais, ocasionalmente colocando em cena as figuras de Napoleão (que fala invariavelmente de si), da República e do par central de toda a narrativa: Jacques Jaujard, que foi diretor do museu nos tempos da Guerra, e Franz Wolff-Metternich, o oficial alemão que tinha a seu cargo a gestão de todo o património artístico (um homem nobre e culto que, por ter sucessivamente adiado o envio das obras para Berlim, acabou recolocado na Baviera em 1942 e, anos depois do armistício, chegou mesmo a receber uma condecoração francesa).
Mais do que em A Arca Russa, em Francofonia há uma mais presente trama narrativa a acompanhar as imagens de fio a pavio. Mas, entre ambos, fica uma forma de olhar para os museus como mais do que um repositório de obras de arte. São expressões de poder. De identidade. E, no fim, terreno de comunhão de gestos do génio humano.
“Francofonia”
Realização: Alexander Sokurov
Com: Louis-Do de Lencquesaing, Vincent Nemeth, Benjamin Utzerath e Johanna Korthals
Distribuição: Leopardo Filmes

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