A arte de desafinar (em todo o palco)
Texto: NUNO GALOPIM
A história da cantora que não era capaz de cantar guarda em si razões que habitualmente ficam por explicar. Porque se exporia em público alguém que, repetidamente, seria incapaz de entoar, de forma afinada, a mais simples e curta das frases musicais? Delírio e sonho, demência, ilusão consentida?… E, também, como de resto o têm mostrado as várias abordagens biográficas, um jogo de interesses, chegando os aplausos de quem escuta a desafinação mas aplaude com o entusiasmo de quem acabara de escutar uma diva maior do bel canto. O filme que Stephen Frears cria com base na reta final da vida da socialite nova-iorquina Florence Foster Jenkins (1868-1944) deixa algumas dessas eventuais razões por explicar. Mas mesmo sem o porquê enunciado, mostra uma vez mais segurança narrativa na construção de um biopic (ainda há semanas estreara entre nós outro, de sua autoria, sobre o ciclista Lance Armstrong). E torna definitivamente num ícone da cultura popular uma das mais intrigantes figuras que a história da música do século XX conheceu.
Uma Diva Fora de Tom não nos dá o era uma vez de fio a pavio, concentrando o arco narrativo num fim de vida quando, na Nova Iorque dos anos 40, Florence Foster Jenkins, mentora de diversas estruturas de apoio e financiamento a instituições musicais da cidade, resolve sair do “casulo” protegido e controlado para o qual, entre amigos, habitualmente dava recitais para descobrir os estúdios de gravação (para criar discos que pretendia oferecer como presente e não peças destinadas ao mercado) e, mais adiante, e por uma primeira vez, dar uma atuação numa grande sala – o Carnegie Hall – com bilheteira aberta…
A primeira nota afinada de Stephen Frears está no casting, com Meryl Streep a vestir um papel tragicómico que sustenta toda a construção em seu redor, contracenando com Hugh Grant (no papel do marido) e Simon Helberg (no papel do pianista que a acompanhava nos ensaios, em palco e até para ela chegou a compor). E é de um investimento maior na construção das personagens – em cujos diálogos surgem, aos poucos, retratos adicionais das vidas de cada um – e de um trabalho exigente de art direction que nasce, com clareza classicista, um olhar sobre uma figura que o teatro já visitou em diversas ocasiões, que inspirou ainda recentemente o filme Margerite, de Xavier Gianolli e que tem a sua escassa obra gravada disponível em vários lançamentos discográficos, um deles, sob o título Murder in the High Cs, editado pela prestigiada Naxos.
O filme é uma ficção inspirada numa figura real e não um docudrama, pelo que aqui e ali a narrativa toma atalhos e segue por transversais que não correspondem exatamente à realidade, estando contudo sempre talhados em função de uma verosimilhança que nunca é abalada. O rol de “admiradores” – de Arturo Toscannini a Cole Porter – e uma representação tão realista quanto possível dos atributos vocais da protagonista servem um retrato tão credível quanto capaz de servir uma plateia de cinema que antes nunca ouvira falar da cantora.
Sem querer “perdoar” àquelas notas – até porque não têm sequer de pedir perdão, já que eram assim mesmo e, num outro tempo, até poderiam servir-se suportadas de um discurso pós-qualquer-coisa – ao filme faltou apenas deixar, nas notas finais, uma observação sobre os porquês… Vítima de sífilis e sujeita a tratamentos com mercúrio e arsénico, Florence Foster Jenkins foi além da esperança de vida habitual dos males (e curas) de que padecia. Teriam a doença (ou os tratamentos) causado os distúrbios no sistema nervoso central (ou até apenas a nível da perceção auditiva) que a impedissem de “cantar” afinada? Pois se, entre os créditos finais o filme nos lembra dos destinos posteriores do marido ou do pianista (que não teve carreira na música depois da morte de Florence), porque não nos deixa com algumas pistas possíveis para tentar entender o porquê de tão raro canto?
“Uma Diva Fora de Tom” (“Florence Foster Jenkins” no original
Realização: Stephen Frears
Com: Meryl Streep, Hugh Grant e Simon Helberg



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