À beira-mar é que se está bem
Texto: JOÃO SANTANA DA SILVA
Não é a primeira aventura do género para o autor, Paulo Moura (n. 1959), jornalista e escritor que pertenceu às fileiras do Público durante 23 anos. Mas é uma das mais marcantes. Para ele e, acredito, para qualquer leitor. Já há poucos anos, em textos que publicou no jornal onde trabalhava e, mais tarde, num livro chamado Longe do Mar (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014), atravessou o país de Norte a Sul viajando apenas pelo interior do país, ao longo da familiar e castiça Estrada Nacional 2. Foi por aí que testemunhou as festas das terreolas, a desertificação das aldeias, a desgraça dos amores impossíveis ou inquebráveis e um lado tragicómico no sem-fim de histórias que aguardam serem contadas na parte de Portugal que fica na sombra da zona costeira. O que ficara então por contar?
Ficou o outro lado, precisamente o que projeta essa sombra. Paulo Moura dispôs-se a conhecer Portugal profundo mas pela costa, percebendo o que mudou ou se perdeu com a passagem dos anos no litoral. Extremo Ocidental: uma viagem de moto pela costa portuguesa, de Caminha a Monte Gordo (Elsinore, 2016) revela o pano de fundo logo no título (apesar de, na verdade, ir além de Monte Gordo, até Marrocos), repetindo a graça de atravessar o país montado na sua Triumph Tiger 800 em busca de histórias. Mas são essas histórias que compõem o verdadeiro mapa da estrada. Mais do que as estradas nacionais ou a velocidade da mota, são as pessoas que encontra pelo caminho que lhe marcam o passo e oferecem combustível para continuar a viagem. É um “viajante ativo”, como refere logo nos primeiros parágrafos de Extremo Ocidental. “Percorrer a costa portuguesa de moto, no Verão, não é propriamente uma reportagem de guerra”, diz, evocando o exemplo de Vozes de Chernobyl de Svetlana Alexievich, “mas não será por isso que nos entregaremos à indolência contemplativa”. Pelas histórias aqui recolhidas, a viagem foi longe de indolente.
Se em Longe do Mar, Paulo Moura se dedicou (conscientemente ou não) a realçar os contrastes entre os animados verões e a monotonia das restantes estações do ano ou a desfazer a mitologia da imagem salazarista da aldeia honesta e de suave trato, em Extremo Ocidental acaba por fazer o retrato, sobretudo, do efeito das décadas nas vilas e cidades. De como recantos lusitanos de pujante indústria cederam pouco a pouco à modorra e ao abandono, de mãos dadas com o fim dessas fábricas. De como lugares simples e idealistas como os parques de campismo se transformaram rapidamente em comunidades normativas e mesquinhas. E, num misto de lamento e voyeurismo, de como grandes centros turísticos foram perdendo o grande fluxo de visitantes.
Em Afife, ficamos a conhecer o defunto Casino Afifense, bem como a animada vida associativa e recreativa daquela pequena freguesia de Viana do Castelo. Mas o que fica guardado na memória é o inimitável porte de galã e as entradas majestosas de Lúcio Amorim “Pirilau”, o sedutor da aldeia que, numa noite em que joga e ganha no casino vestido com o melhor fato, termina em suicídio. É a personagem que mapeia o road map, portanto. Personagem importante no mapa é também Armandina, esta um daqueles sinais sonoros, luminosos e tudo o mais que obrigue a que não nos passe despercebido. “Esse mamarracho de merda! Alguém vai pôr velas nessa aberração? Isso é uma fantochada”, grita a guerreira de 70 anos no meio da praça de Vila do Conde acerca de um monumento novo (o inesquecível “monumento das alminhas”) que veio substituir uma antiga imagem do Senhor dos Benguiados, que protegia os pescadores das Caxinas. E, para quem acha que é só show-off, desenganem-se, porque é também ela que põe em sentido os autarcas, que não querem o seu nome debaixo de fogo contra o exército verbal de Armandina. “O que deviam pôr ali era a cabeça do careca!”, berra Armandina, referindo-se ao antigo presidente da Câmara. Ninguém está a salvo da justiceira de Vila do Conde. Especialmente os corruptos, mentirosos e políticos quebradores de promessas.
Outras histórias também são contadas de forma magistral. A ascensão e queda do império dos Tomé Feteira, em Vieira de Leiria, é uma narrativa que atravessa gerações e pontos de vista, indo do passado para o presente como um fantasma de Um Conto de Natal, de Charles Dickens. Dá-nos a conhecer, por exemplo, a diferença entre os irmãos Albano e João Tomé Feteira. Se o segundo é o “mago do laboratório” naquela imponente fábrica das limas, já Albano, “o perfumado, tinha duas especialidades, só remotamente relacionadas com o fabrico de limas: as mulheres e a repressão aos trabalhadores”. Mas as pessoas comuns nunca são esquecidas, como o ex-trabalhador da fábrica Fernando Fonte. No final da historia, contempla o local da fábrica entretanto fechada. “Eu sei que fomos escravizados”, diz. “Mas não consigo olhar para estes pavilhões sem me emocionar”.
O resistente da Ilha do Pessegueiro, os estivadores de Lisboa (ah, “João do Esfola”), os pescadores de Sesimbra ou as aventuras no parque de campismo da Costa da Caparica também seriam, por si só, merecedoras de leitura. É neste último que Paulo Moura se depara com a impossibilidade de montar tenda no campismo. “A sério?”, perguntarão. A sério. O parque é reino de monarca incerto mas de relevo bem definido pelas caravanas e os seus avançados, pelos caminhos ladrilhados, assadores, e parabólicas. O romantismo da tenda cheira a hippies e a intrusão, um pouco como um nudista numa praia lotada em Cascais. O que não quer dizer que os “campistas” não se saibam divertir. Todas as noites há bandas, música, animação e alegria. Para quem gosta, pelo menos. “Homens de manga cava e fio de ouro, rapazes de camisa justa lilás e brinco, gel e patilha fininha, dançando com raparigas de vestido preto justo e curto e saltos altos, entradões anafados, de calção e chinelo, boné branco de pala para trás, raparigas em grupo à espera nas mesas, crianças a correr, outras de trotinete: é uma autêntica festa de aldeia que mobiliza a comunidade inteira até às tantas”. Dá vontade de ir e participar na festa. Ou não.
Independentemente do produto final que é Extremo Ocidental, há duas características de Paulo Moura que saltam à vista. A primeira é ser um excelente escritor e um fenomenal contador de histórias, de pena discreta e subtil, sem nunca deixar de ser observador participante. A segunda característica é aquela que, precisamente, só os grandes contadores de histórias têm: fazer os leitores interessar-se por temas com os quais nada têm a ver. Já tinha sentido isso na pele, ao ler o seu Passaporte para o Céu (Dom Quixote, 2005), o único livro que alguma vez li sobre refugiados e imigração clandestina. Senti isso com Longe do Mar e, agora, repetiu-se com este livro.
Ao mesmo tempo, não deixa nunca de ser um jornalista. A escrita de não-ficção literária não abafa o olhar sobre a realidade e sobre a história adormecida que existe em cada sítio, em cada aldeia, em cada fábrica abandonada, em cada casa em ruínas, em cada pessoa sentada no banco de jardim, cujas rugas escondem sempre uma vida que se entrelaça com muitas outras que, obrigam as convenções, consideramos “importantes”. Daí Armandina, “João do Esfola” ou Joaquim Matias o “dono” da Ilha do Pessegueiro surgirem aqui como verdadeiros embaixadores dos seus recantos de Portugal. Para além de, diplomaticamente, virem em paz, também trazem ofertas. Neste caso, é a história do litoral de Portugal, que parece que todos conhecemos mas, na verdade, ignoramos de todo. Extremo Ocidental é o antídoto para essa ignorância.

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