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O ritmo está, por aqui, bem longe de abrandar

Texto e foto: JOÃO PASCOAL, em Londres

O festival Afropunk chegou a Londres e levou Grace Jones ao Alexandra Palace numa noite que passou pelos tons e ritmos pelos quais tem feito uma obra que traduz todo um percurso feito de escolhas arrojadas.

Depois das edições de Brooklyn e Paris o festival Afropunk chegou ao Alexandra Palace em Londres. Para cabeça de cartaz a organização convidou Grace Jones, a lendária cantora e actriz cuja carreira com mais de 40 anos é por si só um monumento à singularidade. Um percurso feito de escolhas arrojadas, raras vezes preocupado com o veículo comercial e focado na construção de um universo musical e iconográfico próprio. Essa mesma singularidade é visivelmente apreciada pela imensa multidão que perto 22 horas se junta perto do palco No-Hate onde Jones se prepara para apresentar o seu espectáculo.

A cortina negra que cobre o palco ergue-se quando ecoam os primeiros acordes de Nighclubbing, composição de David Bowie e Iggy Pop que dá nome ao álbum de 1981 gravado nos estúdios Compass Point nas Bahamas. Grace Jones observa-nos ao longe. Silhueta austera, contida nos movimentos, coberta por um manto negro encimado por uma caveira dourada, em tudo mais perto do teatro kabuki do que um convencional concerto de rock. No corpo pouco mais do que as pinturas tribais como as que Keith Haring lhe desenhou para uma sessão fotográfica nos anos 80.

A banda, composta por seis músicos, reproduz de forma musculada o repertório da cantora. Os próximos 90 minutos percorrerão as diferentes tonalidades com que Grace Jones coloriu a sua carreira: o disco sound nova-iorquino, o dancehall jamaicano, a pop operática e grandiosa de Slave To The Rhythm – o êxito essencial de meados dos anos 80 – ou o trip-hop cinematográfico das mais recentes aventuras musicais. E claro, a voz. Sempre a voz. A teatralidade que entrega na interpretação de cada canção, a forma como grita as palavras no momento certo, um instrumento que se tornou mais grave e expressivo com o passar do tempo. Sem idade, a ecoar pela arena de um Alexandra Palace completamente rendido. Sabemos que estamos na presença de uma figura maior, outrora rainha do Studio 54, depois reinventada como a essência do cool na época do pós-punk e da new wave. A mesma que se deu ao luxo de estar cerca de 20 anos sem gravar para, em 2008, regressar com o sublime Hurricane e encontrar uma nova geração de admiradores.

Entre cada música conta-nos histórias. As histórias por trás das canções. Ao evocar o gospel em William’s Blood explica-nos que se trata de uma canção sobre o facto da mãe lhe ter pedir para ter uma vida convencional quando, na realidade, optou por fazer tudo aquilo que mãe gostaria de ter feito. Convida-nos a uma viagem a Nova Iorque antes de se entregar ao disco sound hedonista de Pull Up To The Bumper para minutos depois levar-nos até à Jamaica através do ritmo pulsante de My Jamaican Guy. O momento rock (ou love rock como nos explica) surge ao interpretar Love Is The Drug dos Roxy Music. Quando canta Warm Leatherette atreve-se a acompanhar a banda com dois címbalos que toca agressivamente, derrubando-os ao sair do palco com a mesma postura bizarra que lhe conhecemos das fotografias de Jean Paul Goude.

Vê-la em palco é assistir a uma performer que coloca o talento e a experiência ao serviço das canções. Não existe a teatralidade excessiva dos concertos pop da actualidade, nada nos parece demasiado coreografado. Improvisa sobre as canções e troca as voltas à banda que a acompanha. Aos 68 anos Grace Jones pouco tem para provar. Em palco, sente-se que está perfeitamente à vontade na sua pele, corpo, sexualidade e raça. Vibrante e vital. Orgulhosamente diferente, porventura feliz com o que construiu e pelo imensa admiração que a sua obra desperta. Escolha perfeita para um festival como o Afropunk que promove celebração da individualidade e do orgulho naquilo que nos torna únicos, independentemente de género, raça ou sexualidade.

Para o final do concerto reserva-nos o momento mais celebrado dos seus espectáculos, uma versão de Slave To the Rhythm cantada enquanto faz girar um hoola hoop à cintura. Com mestria, sem perder o ritmo durante cerca de oito minutos, como que a dizer-nos que a idade nada é mais do que um número. E o ritmo, pelo que vemos neste concerto em Londres, está longe de abrandar. Ou, como nos diz na canção com que se despede do público londrino, never stop the action, keep it up.

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