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Caos pop, 20 anos depois

Texto: ANDRÉ LOPES

Após um arranque de carreira conturbado e malfadadas digressões pela América, Marilyn Manson edita “Antichrist Superstar” em 1996. É o seu primeiro disco de relevo, que recordamos hoje como uma obra ímpar dos anos 90.

Poderá ser pensado como um dos vultos mais fulgurantes que marcaram a viragem do século: Marilyn Manson – nome artístico de Brian Warner e título do projeto que encabeça até hoje – soa quase como uma palavra-mágica. Aproximando Marilyn Monroe de Charles Manson, uma das maiores premissas da obra do grupo passa pelo circundar de uma ideia de atracão entre opostos, em jeito de contemplação daquilo que limita a individualidade do ser.

Desde a estreia com Portrait of an American Family (1994) os temas e elementos ajudaram a construir um universo artístico próprio foram explicitados: Get Your Gunn, Lunchbox, Cake and Sodomy e Dope Hat são canções que navegam por entre um rock tão garrido quanto sombrio. Por estas faixas habitam personagens e contextos que exploram as dicotomias inerentes à cultura americana e à própria natureza humana, pensando a opressão política, a rigidez da religião e a hipocrisia da cultura de talk-show que no início da década proliferava nos Estados Unidos, como elementos-chave dessa identidade nacional.

Marilyn Manson surge por entre esse panorama como um devaneio hard rock, apetrechado com uma personalidade demasiado pop para os fãs de música do género, enquanto em simultâneo cultivava uma sonoridade agressiva em demasiada para o grande público. Em concreto estarão em causa as ideias de um artista que inspirado por David Bowie, Kiss, Jane’s Addiction, The Doors ou Alice Cooper procurou um lugar só seu na ressaca enfadonha do pós-grunge.

Partindo de noções da música industrial herdadas dos Nine Inch Nails e dos Skinny Puppy, os primeiros discos do grupo contaram inclusivamente com a produção de Trent Reznor, uma das figuras que em mais terá contribuído para que Antichrist Superstar se tornasse uma quase ópera-rock, cuja narrativa encontra continuidade em Mechanical Animals (1998) e Holy Wood (in the Shadow of the Valley of Death) (2001). Com sessões de gravação em estúdio – devidamente documentadas na autobiografia Long Hard Road Out of Hell coescrita com Neil Strauss – a revelarem o que de pior poderá existir numa vivência de consumos excessivos paralelos a uma personalidade insegura e impulsiva, Antichrist Superstar adquire quase um estatuto de certificado de vitória. Pautado por referências ao oculto, o disco tem uma base conceptual focada na alienação e na metamorfose niilista de uma personagem desassociada da sua própria realidade.

O que se escuta neste que é o segundo álbum da banda passa por uma assimilação de ideias que buscavam um rock’n’roll moderno, sem medo dos pedais de distorção. A produção ficou a cargo de Dave Ogilvie, Sean Beavan, Trent Reznor e o próprio Marilyn Manson, que juntos foram capazes de talhar um alinhamento de canções que confiam a força da guitarra elétrica e do baixo forte de Jeordie White (aqui sob o nome Twiggy Ramirez) como forças aliadas de uma produção propositadamente instável, que recorre às eletrónicas para garantir um sentido atmosférico trágico, quase mísero.

Dried up, Tied and Dead to the World, Tourniquet e Kinderfled são construídas precisamente a partir desse ambiente cénico – que seria transposto para palco em digressão mundial. Porém, as canções do disco vão além de estudos de guitarra em punho debruçados sobre o isolamento e o desespero. Little Horn – escrita a quatro mãos por Twiggy Ramirez e Trent Reznor (convocado aqui para revisitar a essência caústica de The Downward Spiral, de 1994) – assume orgulhosamente o rótulo de rock industrial enquanto um dos conjuntos de riffs de guitarra mais fortes de todo o repertório da banda, consegue em menos de três minutos assegurar que a música grunge está irreversivelmente deixada para trás. E felizmente, já que o que se segue é um mostruário de canções que se interligam numa sequência quase fílmica.

Cryptorchid socorre-se quase só de eletrónicas, percussão digital e sintetizadores para um dos momentos mais apaziguados do álbum no que diz respeito ao ritmo, porém o seu conteúdo mantém-se perturbador. É marcada uma primeira fase da transformação da personagem principal do álbum, que prosseguirá o seu passeio industrial via Deformography. Em Antichrist Superstar cabe uma história, mas cabem também canções eternas: The Beautiful People, em específico, tornou-se um quase “standard” da música rock dos anos 90. É um dos mais bem-sucedidos singles da banda e marca um registo quase tribal de percussão que voltaria a ser recuperado em álbuns posteriores para faixas como Disposable Teens e Doll-Dagga Buzz-Buzz Ziggety-Zag.

A fase final do álbum – as últimas cinco canções surgem agrupadas sob o título Disintegrator Rising – é especialmente impressionante pela maneira como as canções vivem no limiar de se tornarem exacerbantes pelo vício numa prestação vocal cegamente agressiva. 1996 e The Reflecting God são momentos fortíssimos, espaçadas no alinhamento por Minute of Decay, conduzida quase inteiramente por uma hipnótica melodia de baixo elétrico. No fim de tudo, Man that You Fear é uma circunstância solene, um quase requiem após uma jornada onde exagerar foi algo de estrutural.

O álbum conseguiu um impressionante terceiro lugar no top de vendas americano e seguiu para a estrada com a digressão Dead to the World. Neste percurso, um espetáculo teatral pôs em teste a moralidade e a censura americana, a partir de momentos profanos com a destruição de bíblias num espaço cénico preenchido com iconografia fascista e religiosa. Foi por aqui que muitos dos rumores clássicos sobre a banda terão começado, por via de uma prestação visceral em palco, que do espectador exige uma reação.

Devidamente documentada em vídeo, a digressão foi ainda mote para um pequeno EP – Remix & Repent – que integra no seu alinhamento remisturas e registos ao vivo de temas de Antichrist Svperstar.

Subitamente, a América e o mundo tinham sido tomados de assalto por um Alice Cooper do tempo presente, que ao cruzar influências de áreas mais extrema do rock, concebe um álbum que marca a história do rock moderno capaz de, com todo o mérito, captar atenções maiores.

O futuro viria a assinalar uma flagrante mudança de sonoridade com Mechanical Animals, onde as eletrónicas ganharam destaque, juntamente com um sentido melódico que permitiu canções diferentes, menos concentradas no choque e no distúrbio. Poucos serão os discos que durante a década de 90 singraram com uma personalidade artística tão única. Só por isso, Antichrist Superstar merece uma nova escuta, 20 anos depois, para que nos relembremos de uma época em que Nine Inch Nails, The Smashing Pumpkins (e Placebo, na Europa) captavam a atenção de um público jovem que desenfreadamente procurava referências com as quais se pudesse identificar, ou cuja música traduzisse angústias partilhadas por ambas as partes. Com Antichrist Superstar, Marilyn Manson tem vitaliciamente um lugar nesse conjunto.

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