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O ‘requiem’ pelas irmãs Lisbon

Texto: NUNO GALOPIM

A banda sonora que os Air compuseram para o filme “As Virgens Suicidas” de Sofia Coppola está de regresso 15 anos depois em edições comemorativas em vinil e CD, com extras gravados ao vivo na época.

Passados quinze anos sobre o momento em que a estreia de Sofia Coppola chegou aos ecrãs não sei se As Virgens Suicidas serão hoje mais vezes lembradas pela música dos Air que lhe serviu de banda sonora que pelas imagens e narrativa em si. Mesmo tendo bandas sonoras igualmente poderosas, filmes posteriores da realizadora como Lost In Translation: O Amor é um Lugar Estranho (2003) e Marie Antoinette (2006) fixaram-se na memória pelo todo e não apenas pela parte. Não é falta de mérito de Sofia Coppola, que logo aqui deixou clara uma forma muito particular de trabalhar personagens femininas jovens e impotentes confrontadas com um mundo maior no qual o poder está longe das suas mãos (ou delas escapa) e pode agir contra a sua vontade. A força da memória sonora de As Virgens Suicidas, que para muitos suplantará eventualmente o da recordação do próprio filme em si, cabe em pleno ao trabalho magistral de composição assinado pelos franceses Air que aqui, juntamente com os álbuns Moon Safari (1998) e 10.000 Hz Legend (2001), encontram a troika de referência da sua obra e o conjunto de composições que mais bem define as suas marcas de personalidade. Ou, para sermos mais justos, as que correspondem àquela etapa da sua obra e quem mais os demarcaram entre o panorama ao seu redor.

O filme, no qual a então jovem realizadora mostrava desde logo um saber assimilado na arte de contar histórias, tomou como ponto de partida o romance homónimo de Jeffrey Eugenides (o mesmo autor do magnífico Middlesex). Ali encontrávamos o mundo fechado da família Lisbon, no qual pais devotos e afogados numa moral sufocante afastaram as cinco filhas dos olhares do mundo ao seu redor, gerando um foco de instabilidade que em pouco tempo transcende as fronteiras do aparente controlo para acabar numa tragédia descontrolada que faz pensar como a noção de fundamentalismo habita mais lugares e credos que aqueles de que mais habitualmente se fala.

Os Air eram então um nome em ascensão e já com visibilidade global. Depois de três primeiros singles quase apenas para francês escutar, tinham batido à porta do mundo ao som de Sexy Boy, juntando o álbum Moon Safari a um conjunto de outros discos e autores – como Etienne de Crécy, Daft Punk ou St. Germain (isto é, Ludovic Navarre) – que lembraram a todos que em França também se fazia música (uma realidade da qual as atenções globais da indústria do disco na idade da pop se afastara desde finais dos anos 60 ou inícios dos 70). Moon Safari mostrou contudo ser mais que uma carruagem num comboio em movimento. E pela excelência de um álbum pop que sabia integrar heranças do progressivo, juntando às electrónicas do seu tempo toda uma carga vintage repleta de memórias dos setentas, os Air – que na capa de Sexy Boy juntavam o rótulo “french band” ao nome – cedo se afastaram dessa legião francesa. Singles como Kelly Watch The Stars e All I Need mantiveram vibrante o “momento”. E o passo seguinte era assim fundamental para cimentar o estatuto confirmado, evitando que o esquecimento os abraçasse mal a “onda francesa” se dissipasse e desse espaço à seguinte, fosse essa qual fosse (no departamento das vagas nacionais sob esforço concertado seria a norueguesa, em 2001, revelando nomes como os Royksopp ou Kings of Convenience, entre outros).

Chegou então o convite de Sofia Coppola. Que não se esgotava na criação de uma canção para o filme, mas de toda a banda sonora… E entre Playground Love (que editaram como single que chamou atenções para o disco) e o score que compuseram, interpretaram e gravaram, não mais fizeram do que continuar a demanda de uma música do presente mas carregada de atmosferas retro (com papel aí fulcral para um batalhão de teclados analógicos), tal e qual o haviam já mostrado em temas de alguns dos seus primeiros singles ou até mesmo em belíssimos instrumentais de Moon Safari como La Femme d’Argent ou Talisman.

As marcas vintage dos anos 70 sublinhavam a caracterização de época necessária para um filme cuja ação decorria nesses tempos. Por outro lado, o diálogo dessas memórias com a modernidade vincava o ponto de vista crítico que o olhar de Sofia Coppola traduzia no filme.

A música, que transpira um profundo tom de desencanto e espelha a solidão na qual foi fechado o quotidiano das irmãs Lisbon, é como um requiem por cinco almas a quem a vida, e não apenas a liberdade, foi vetada pelos próprios pais. O filme não assinalou contudo o seu único destino. Além da edição em disco, tanto da canção Playground Love como da restante banda sonora em álbum, logo depois surgindo ainda um outro disco com uma seleção de canções da época inspirada pelo filme, e que cruzaram também as suas imagens, a música dos Air conheceu vida na estrada, tendo sido apresentada não apenas em concertos mas também em sessões em estações de rádio.

Quinze anos depois uma edição comemorativa da banda sonora de The Virgin Suicides junta os temas do álbum originalmente lançado no ano 2000 a este legado de expressões captadas ao vivo, incluindo temas registados numa sessão na KCRW de Los Angeles e num concerto dado ao vivo na mesma cidade, em ambos os casos em janeiro do ano da edição do disco. Além desta edição comemorativa, apresentada em dois CD, há uma outra, que junta a estes dois discos em vinil (um com as versões de estúdio e um outro, em formato picture-disc, com os registos live) e ainda o single com as remisturas de Playground Love e mais uns extras de merchandising. Contra os destinos trágicos das manas Lisbon, a música dos Air respira vida. E em 15 anos envelheceu bem.

A edição comemorativa de “The Virgin Suicides” está editada em CD e vinil, assim como está disponível em plataformas digitais para download e streaming pela Universal UK. Há uma edição especial, com vinil e CD já igualmente disponível.

1 Comment on O ‘requiem’ pelas irmãs Lisbon

  1. Muito bom! Indispensável registro pelos 15 anos de As Virgens Suicidas.

    Abraços.

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