Um caso de instinto musical inato
Escrever sobre bandas (provavelmente) desconhecidas do leitor é sempre um exercício semelhante a descrever o sabor de um vinho. Referem-se frutos, especiarias e madeiras, porque dizer “uva fermentada” não explica grande coisa. Comecemos então dizendo: Cocteau Twins, Kate Bush e Joy Division entre 1978 e 1983. Depois um cheirinho mais contemporâneo de CocoRosie, GangGangDance e the Verve. Isto para dizer Scarlet Chives. E no final eles juntam estas influências todas e, em vez de se balizarem por elas, chutam a bola para fora do campo na maior parte das suas canções.
Escrevo para vos tentar levar a descobrir um álbum fascinante. Mas o que verdadeiramente gostava era de vos fazer descobrir a banda do mesmo modo que a descobri: ao vivo, sem saber nada sobre eles. O choque que foi! Um grupo de adolescentes a tocar literalmente ao fundo de um corredor e a fazer música com um talento impressionante. “Crianças” prodígio são assustadoras.
Se vos posso sugerir um ponto de entrada para Scarlet Chives (2010), o homónimo primeiro álbum desta banda dinamarquesa é precisamente pela canção The horror.
Podem ouvir aqui.
É uma canção típica de primeiro álbum onde se nota perfeitamente o fogo que trouxe à vida esta banda: Cocteau Twins e Curve (podem até fazer um paralelismo directo com a canção Horror Head). E no entanto é uma canção que já tem aquele ingrediente único que separa os Scarlet Chives das suas inspirações: a capacidade da vocalista Maria Mortensen de pegar em poemas íntimos e ginasticá-los em melodias improváveis, mesmo que limitada por formatos pop ou escalas pentatónicas que lhes dão aquele ar oriental tão KateBush, fase The Kick Inside.
Ver os Scarlet Chives ao vivo pela primeira vez em 2011 foi chocante porque é raro encontrar uma banda de adolescentes em início de carreira com um instinto musical inato. Nas mãos de músicos menos dignos desse nome, canções como The Horror, Don’t put your Hands There ou Somethings Never Change poderiam ter facilmente resvalado para inconsequentes muralhas de guitarra e feedback. É tão fácil para músicos de bandas de garagem cair na contemplação umbilical da sua capacidade de fazer barulho com uma guitarra eléctrica! E no entanto ali estavam, perfeitamente conscientes de que na melodia da voz reside a coluna vertebral destas canções e que a música, para as vestir, se pode estender do puro silêncio e delicados pianos até delírios de som eléctrico e tambores tribais.
Scarlet Chives não é um álbum fácil ou imediato mas como as coisas boas que se estranham e se entranham, é um disco a que se volta constantemente com curiosidade que sai recompensada. Dez canções que talvez não valha a pena ouvir em sequência porque cada uma tem em si um pequeno universo. Leiam as letras.
Desde então a banda lançou em 2013 o seu segundo álbum, This is protection, que, paradoxalmente, é mais experimental mas contém o seu momento mais pop na imperdível Some days stay. – Daniel Barradas
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