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Três novos olhares sobre o Holocausto

Texto: NUNO GALOPIM

Os documentários ‘A Noite Cairá’ de André Singer, ‘O Homem Decente’ de Vanessa Lapa e ‘O Último dos Injustos’ de Claude Lanzmann chegam desvendam novos pontos de vista sobre memórias dos tempos da II Guerra Mundial.

Imagem de "A Noite Cairá"

As histórias da II Guerra Mundial e do Holocausto em particular ainda não estão todas contadas. Ainda recentemente o brilhante documentário A Film Unfinished, de Yael Hersonski (editado em DVD na Artefact Films) mostrava a descoberta das imagens que tinham ficado no chão da mesa de montagem depois da rodagem de um filme de propaganda nazi no gueto de Varsóvia, promovendo novos pontos de vista (e revelações) a esta história ainda em constrição. Agora, em vésperas de se assinalar a passagem de mais um dia Internacional pelas Vítimas do Holocausto (a 27 de janeiro) e num 2015 em que se marcam a passagem de 70 anos sobre o fim da II Guerra Mundial, três documentários chegam ao circuito nacional, promovendo, cada um deles, um olhar sobre um universo já conhecido, mas sempre sob nova perspetiva e, em todos eles, trazendo revelações.

Durante décadas houve um filme sobre os campos de concentração que ficou guardado, por motivos políticos, algures numa gaveta. Havia uma nova Alemanha a edificar, um entendimento de parte grande do território com os vencedores e as imagens e o que estas dariam que pensar não pareceu a jogada política mais oportuna. E as imagens ficaram em silêncio. Que imagens? As tropas aliadas – seja de que país – costumavam fazer-se acompanhar por operadores de câmara, que iam assim documentando o progresso ao avanço militar contra uma Alemanha em contagem decrescente para a capitulação. E à medida que iam passando pelos campos de concentração, libertando e tentando salvar os sobreviventes, captaram imagens de morte, horror, desolação. Pilhas de cadáveres reduzidos a pele e osso, barracas com condições de habitabilidade desumanas, olhares quase sem vida nos corpos vivos dos que ainda respiravam, histórias de terror… Houve ordens para que tudo fosse filmado para que houvesse prova de que acontecera. A ideia de juntar estas imagens num filme começou a ganhar forma no Reino Unido, acrescentando às imagens captadas pelos seus outras filmadas, mais a Leste, pelos russos – que libertam, por exemplo, Auschwitz, ou americanos. Hitchcock, então já a viver nos EUA, acede em colaborar na montagem, vendo nessa sua demanda de um sentido para a narrativa do filme uma possível contribuição sua para o esforço de guerra. Com Sidney Berstein como produtor, German Concentration Camps Factual Survey começava a ganhar forma. Mas na hora de o terminar – e com uma outra montagem, made in USA, gerando um outro filme, terminada e mostrada, esta acabou na gaveta. Até que recentemente viu a luz do dia, numa montagem terminada pelo Imperial War Museum.

Esse filme (que só pode ser exibido em circunstâncias aprovadas e nunca em estreia comercial) é a matéria prima de A Noite Cairá, de André Singer, que assim não só dá conta da história de um documentário inacabado – teria sido o primeiro sobre o Holocausto – mas não deixando de, agora, nos revelar as imagens e os relatos que teria dado a conhecer ao mundo, da libertação de Bergen Belsen a Auschwitz, entre imagens de época e entrevistas recentes, algumas localizando no presente alguns sobreviventes que assim são eles mesmo parte da História.

Também esta semana chega aos ecrãs O Homem Decente, filme da belga Vanessa Lapa (hoje residente em Israel), que nos dá um retrato de Himmler de um ponto de vista pessoal e novo. O ponto de partida foi aqui uma coleção pessoal de cartas, notas e fotografias da família de Himmler encontrada na sua casa, em pleno campo. Todo o argumento foi construído a partir de excertos dessas cartas e anotações, atores vestindo assim as vozes de Himmler, do seu pai, mulher, filha, amante e figuras da hierarquia nazi com quem trocou palavras escritas. Imagens de época – algumas nunca antes sequer reveladas a partir de negativos guardados em vários arquivos – contribuem assim para um retrato muito próximo e pessoal que dá conta, entre várias revelações, de que em Himmler havia já um perfil ideológico em consonância com o NASDAP (partido nazi) antes de a ele se ligar, tal como entre a sua família – pelo menos na ocasião de uma visita a Dachau – não havia consciência do que acontecia nos campos de concentração.

O filme que completa este trio de olhares documentais sobre o Holocausto é O Último dos Injustos, mais uma importante contribuição para a história do século XX pelo cinema de Claude Lanzmann, o autor do monumental Shoah (ainda hoje a mais importante contribuição do cinema documental para a memória do Holocausto). O filme tem como medula narrativa uma extensa entrevista, filmada em 1975 – e ainda inédita – com o rabi Benjamin Murmelstein, o terceiro e último dos líderes judaicos no campo de concentração de Theresienstadt (na atual República Checa). Acusado de ter colaborado com os alemães – sendo mais tarde reconhecido que assim não fora – Murmelstein procurou exílio em Roma e não chegou sequer a comparecer como testemunha no processo contra Eichmann, que decorreu em Israel em 1961.

Lanzmann escuta Murlemstein, revelando-nos o filme pontos de vista sobre a figura de Eichmann, assim como da construção do embuste de um gueto-modelo no qual descreve a vida como sendo uma morte em câmara-lenta, vivendo os que ali se apinhavam sob o permanente receio de transportes para Leste (que com o tempo se saberia que significava Auschwitz). A entrevista, embora sendo a peça central do filme, não o toma na totalidade, cabendo a Lanzmann a construção de uma narrativa que junta – como em Shoah – uma relação física com os lugares onde as ações descritas tiveram lugar. Os primeiros minutos do filme mostram-no a ele mesmo, numa plataforma de uma estação de comboios do nosso tempo, contando-nos que era ali que desembarcavam os que chegavam de longe para depois caminhar para Theresienstadt, ali perto. Ali, como mais tarde (ao visitar os espaços da cidadela feita campo de concentração) lê excertos da tradução para francês de Terezin, il Ghetto Modello di Eichmann, livro que Murmelstein publicou em 1961 e onde descreve, ao pormenor, a vida naquele lugar. Lanzmann visita ainda uma sinagoga em Viena (a cidade berço do rabi que é protagonista do filme) e uma outra em Praga, do conjunto de visitas, olhares, textos e conversas nascendo um corpo de ideias e memórias que não se esgotam apenas nas evocações do Holocausto, abarcando questões religiosas, políticas e pessoais que aprofundam a intensidade e particularidade de O Último dos Injustos dele fazendo não uma sequela de Shoah, mas um outro capítulo, complementar, a uma mesma obra.

E esta história ainda não se esgotou…

 

A Noite Cairá, de André Singer, O Homem Decente, de Vanessa Lapa e O Último dos Injustos, de Claude Lanzmann, estão em exibição no Cinema Ideal, em Lisboa. No Porto, o filme de Lanzmann estará em exibição nos cinemas UCI Arrábida (sessões às 15.10 e 21.15).

Horários das sessões no Cinema Ideal:
O Último dos Injustos – 16.00
O Homem Decente – 20.00
A Noite Cairá – 21.45

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