A verdade da mentira
Texto: VASCO LUÍS CURADO
Em 1786, na cidade de Göttingen, são publicadas as Viagens Maravilhosas por Mar e por Terra: Campanhas e Aventuras Cómicas do Barão de Münchhausen, pelo poeta Gottfried August Bürger (1747-1794), figura do romantismo alemão, autor de baladas trágicas e arrebatadas que veio a morrer, muito convenientemente, de tuberculose. Bürger traduziu do inglês, e ampliou-o, um livro que aparecera no ano anterior, em Londres, sem menção do autor, embora se saiba que este foi o também poeta, e também alemão, Rudolf Erich Raspe (1736-1794), que se inspirara na figura real de Hyeronimus Karl Friedrich, barão de Münchhausen (1720-1797), o qual, como oficial de um regimento russo de cavalaria, combatera os turcos, vindo mais tarde, nos seus ócios de proprietário de terras, a encantar visitantes e amigos com histórias sobre as suas campanhas passadas. A autoria do livro será um assunto controverso: Bürger ou Raspe? Parece, contudo, que as principais fontes, de um e outro poeta, foram contos folclóricos mais antigos. A língua portuguesa conhece algumas edições, portuguesas e brasileiras, há muito esgotadas.
Na sua primeira aparição, Münchhausen viaja sozinho, a cavalo, numa planície de neve e gelo, devastada pelo vento, a caminho da Rússia. Ninguém viaja a cavalo para a Rússia no meio de condições tão agrestes, mas depressa perceberemos que Münchhausen não é como os outros. Na berma da estrada, vê um velho mendigo, exposto à intempérie. Apesar de sentir o frio cortante, Münchhausen atira-lhe a própria capa para se cobrir. Logo de seguida, uma voz veio do alto, tonitruou pelo céu e prometeu recompensar aquele gesto misericordioso. O barão, que é que conta a história, define-se logo de entrada como destemido, magnânimo, clemente. Dir-se-ia que os feitos notáveis que se vão seguir lhe acontecem sem que ele se esforce para tal, porque beneficia dos favores de uma potência sobre-humana; o que para outros seria o cúmulo do impossível, para ele será corriqueiro. Surpreendido por perigos e contrariedades, resolverá tudo a seu contento, transformará em seu proveito as adversidades que derrotariam qualquer outro.
E as suas façanhas são tudo menos vulgares, em episódios sucessivos: salva o cavalo pendurado no pináculo da igreja; vira um lobo do avesso, literalmente, depois de enfiar o braço na goela aberta do animal e lhe puxar as entranhas; a ocasião em que caiu, montado no cavalo, num charco, salvando-se do afogamento, a si e ao cavalo que ele apertava entre as pernas, ao puxar pelo rabicho do seu próprio cabelo; voa sentado numa bala de canhão para observar as linhas turcas… e muitas outras, sobre mar, sobre terra, na guerra, na caça, sem esquecer duas viagens à Lua. O sangue-frio é o traço de carácter que ele destaca na sua própria pessoa; porque onde outro qualquer falharia, por falta de calma e de pensamento racional em situações tão difíceis e dramáticas, o barão triunfa e prevalece.
Münchhausen é um individualista, mas não um misantropo a quem repugne a companhia humana. É encantador nos salões, elegante nas chancelarias, eficiente nos exércitos. Também sabe ser líder: comanda um destacamento de hussardos e, mais tarde, ei-lo que reúne uma trupe de talentosos, que só não são mais excêntricos do que ele porque é graças ao próprio barão que se juntam: há um que vê a milhares de léguas, um outro que ouve a igual distância, um terceiro que sopra das narinas um vento capaz de desbaratar uma armada inteira no mar, um quarto que vai a correr de Constantinopla a Viena, e regressa, em apenas uma hora.
Já nos sentimos companheiros do grande confabulador e fanfarrão, veterano das duas formas de actividade humana em que a fanfarronice costuma prosperar: a guerra e a caça, podendo talvez juntar-se-lhes uma terceira, a diplomacia.
Estas aventuras, tão aristocráticas como populares, fornecem-nos, como os contos de fadas, soluções para problemas do dia-a-dia, na forma de metáforas, as quais, num ser eminentemente verbal como o humano, são instrumentos de notável precisão. Assim, como não ver na aventura em que o barão se salva sozinho de um charco, puxando-se pelo rabicho do cabelo, o deprimido que, não confiando apenas em ajudas externas, psicológicas ou medicamentosas, se vê obrigado a reunir energias e a puxar-se sozinho para fora do afundamento e da sucção da tristeza patológica? Um pouco mais de aventura, um pouco mais de épico, eis o que se pede ao ser humano para vencer a miséria psicológica em que vai jazendo e conformando.
Não é despropositado transpor assim para o quotidiano o que nos é narrado como raro e excepcional. O excepcional torna-se exemplo e referência, e é, por isso, uma categoria especial do comum. Tudo o que é extraordinário tem o seu correlato no que é ordinário e corrente, tudo o que é aumentado e grande tem a sua correspondência proporcional no que é diminuído e pequeno, segundo um jogo de espelhos que se repete na consciência humana e que torna intermutáveis o grande e o pequeno, o longínquo e o perto, o estranho e o familiar. Sem este jogo de mutualidades e interinfluências, a própria vida simbólica seria impossível. Daí a prosperidade dos símbolos – e desse símbolo em particular que é Münchhausen.
Temos de admirar a consagração de uma personagem da lenda ou da literatura quando ela empresta o seu nome ao campo da ciência. No entanto, a apropriação do nome do barão para designar uma síndrome psicopatológica é indigna da sua memória. Na Síndrome de Münchhausen, o paciente finge ou causa doenças a si mesmo, faz-se internar, mobiliza equipas terapêuticas, anseia por se submeter a toda a espécie de exames e procedimentos, estuda uma doença para melhor a simular, pode provocar sintomas recorrendo a medicamentos, drogas, venenos, material contaminado, corre vários médicos e hospitais; ao contrário do hipocondríaco, que acredita estar doente, o portador desta síndrome sabe que não o está; pensa-se que os seus esforços para estar ou parecer doente visam atrair a atenção e a simpatia. Ora, o que tem a ver o barão aventureiro com um queixoso que simula doenças, ele que se tornou famoso por usar a inteligência, o cálculo frio e a coragem como uma afirmação de força, não de fraqueza?
Que o lado mentiroso da personagem seja o que mais se recorda dela é um empobrecimento lamentável. O que merece ser realçado é o seu lado galante, uma qualidade espirituosa e elegante, que tem tanto de malicioso como de gentil, e que inspira uma confiança inabalável na sua própria força moral.
O amigo dos livros pe(r)didos procura e não encontra nas livrarias do seu país uma edição das aventuras do fabuloso barão. O amante de tais livros aprendeu a desconfiar das traduções de livros ditos infanto-juvenis, que tão frequentemente adaptam o original, isto é, rasuram, corrigem, suavizam, tornam mais aceitável às sensibilidades autossatisfeitas (que não são as das crianças, mas dos adultos que julgam estar a protegê-las), e com isso, mais do que atraiçoar, estragam o original. O amante dos livros pe(r)didos gostaria de encontrar uma tradução fiável das supracitadas Viagens Maravilhosas…, que respeitasse o espírito e a letra das histórias fundadoras, aquelas histórias que fundam toda uma tradição e, começando por ser extravagantes e raras, se tornam exemplares e modelares. De preferência uma edição que incluísse as ilustrações de Gustave Doré, que têm o condão de interagir com a obra escrita como se fizessem parte dela desde sempre, dando-nos a grata ilusão de o acharmos coautor dos livros e não o ilustrador tardio que ele realmente foi.
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