Silêncio, que se vai pedir um televisor!
Texto: NUNO GALOPIM
Não será um ovni na filmografia de Yasujiro Ozu, mas Bom Dia (1959) é um filme único na sua obra, usando um discreto sentido de (bom) humor para retratar a forma como a chegada da televisão começou a mudar o mundo. O mundo japonês, entenda-se (mas as extrapolações são possíveis). Retomando algumas ideias de um outro filme seu – Nasci Mas…, de 1932, ainda na sua etapa de cinema mudo -, com as devidas intervenções na moldagem do contexto à época e evolução da narrativa, este filme de 1959 vive essencialmente entre os espaços (interiores e exteriores) de um conjunto de residências de classe média, num subúrbio de uma grande cidade em finais dos anos 50. E mesmo tomando Ozu o partido dos “adultos” – que são postos em causa, por exemplo, pela small talk que parece nada querer dizer – é pelo ponto de vista dos mais pequenos que toda a história se apresenta.
A presença de um televisor na casa de um jovem casal – que passa o dia do pijama, sussurram as vizinhas entre si – é o primeiro motor dos acontecimentos. Encantados pelas transmissões de provas de sumo, dois irmãos são repreendidos pela família pela intrusão num espaço que não é seu. Pedem então que se compre um televisor para a sua casa e, perante o não, resolvem fazer uma greve de silêncio.
Ozu olha o mundo pela perspetiva dos dois irmãos – o mais novo mimetizando em tudo as ações e atitudes do mais velho, reforçando o poder do par – e de dois vizinhos, colegas de escola. Não deixa de reparar no vaivém das vizinhas, trocando coscuvilhices e em comportamentos que traduzem hábitos antigos. Mas é nas mudanças em curso num tempo de transformações, que começavam a desenhar com as gerações mais jovens um Japão diferente e ocidentalizado, que Ozu foca o retrato do cenário em que esta história de colegas e vizinhos se vai construindo. A importância progressiva do domínio da língua inglesa ou o trajar ocidental dos que rumam ao trabalho na cidade, são marcas que, juntamente com a aurora da era da televisão, fazem de Bom Dia, não apenas um (delicioso) exemplo de uma história bem contada mas também um cândido retrato de uma época.
Seguindo em tudo as marcas da linguagem visual do realizador – notem-se não apenas os enquadramentos de dimensão humana nas sequências em interiores, mas também a arrumação de formas e sagaz exploração de discretos sinais de movimento em vários planos de exteriores – Bom Dia junta ao cinema de Ozu alguns momentos inesquecíveis. Dos gags sobre flatulência ao comentário que prevê que a televisão “fará 100 milhões de idiotas” há motivos de sobra para descobrir ou regressar a um dos mais encantadores filmes da obra de Ozu.
‘Bom Dia’ (1959), em cópia digitalmente restaurada, foi lançado em DVD pela Leopardo Filmes num lote de edições que inclui ainda, do mesmo realizador, ‘A Flor do Equinóxio’ (de 1958 e o seu primeiro filme a cores) e ‘O Fim do Outono’ (1960).
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