Entre os fantasmas e memórias de uma fábrica
Texto: LOURENÇO ROCHA
Iec Long vai levar os estrondos do panchão (canudo vermelho do tamanho de cigarro, com pólvora dentro) à Academia das Artes, no Hanseatenweg em Berlim, hoje às 20.30 (repete quinta às 17.00). O filme integra a 10ª edição da secção Forum Expanded da Berlinale que, sob o título To the Sound of the Closing Door, reúne, “traçando o eco da porta que bate”, performances, instalações, e filmes que exploram, “em termos cinematográficos, o potencial do passado, presente e futuro entendidos como domínio das possibilidades.” Numa entrevista concedida à MdE, João Pedro Rodrigues (JPR) e João Rui Guerra da Mata (JRGM) exploraram o significado da selecção para a sua obra.
JPR – O Forum Expanded é a secção da Berlinale que mostra filmes mais experimentais, na fronteira entre o cinema e as outras artes. Ultimamente temos apresentado trabalhos num contexto museológico e é um caminho que nos interessa continuar a percorrer paralelamente à exibição mais habitual nas salas de cinema.
JRGM – Fizemos a exposição “Santo António” para o Mimesis Art Museum na Coreia do Sul de 26 de Novembro de 2013 a 9 de Fevereiro de 2014. Parte dessa exposição, uma instalação vídeo com quatro écrans do João Pedro, esteve em exibição na Johnson-KuluKundis Family Gallery do Radcliffe Institute da Universidade de Harvard de 29 de Outubro a 4 de Dezembro.
JPR – O nosso filme Alvorada Vermelha foi apresentado na exposição colectiva “ONDE É A CHINA? / WHERE IS CHINA?” no Beijing World Art Museum (Millenium Monument) na China de 16 de Maio a 4 de Junho e no Museu do Oriente (Fundação Oriente) em Lisboa de 29 de Maio a 6 de Julho, tendo sido censurado e banido da exposição de Pequim pelas autoridades chinesas.
JRGM – Ainda sobre a Berlinale, cada vez é mais importante mostrar os filmes em festivais de cinema de classe A. O grau de visibilidade e divulgação que eles recebem nesses festivais é fundamental para que possam circular. Especialmente tratando-se de uma curta que, como sabemos, raramente têm exibição comercial.
O filme é a quinto da série de “filmes asiáticos” que começou com China, China de 2007. O ciclo não foi pensado “de uma forma programática, sucederam-se um após outro, como se cada um nos desse pistas para o seguinte,” explica João Pedro Rodrigues. Assim, a ideia para Iec Long surgiu naquele que foi “o reencontro do João Rui com um território que o marcou profundamente e onde não voltava há 30 anos;” Falam de A última vez que vi Macau (2012) que, João Rui acrescenta, “simultaneamente, foi o primeiro encontro do João Pedro com o palco das histórias que eu lhe contava há mais de 20 anos”.
JPR – Durante as filmagens dessa longa, o João Rui foi-me mostrando o “seu” Macau e ao mesmo tempo, fomos descobrindo um novo Macau. O Mercado Vermelho, por exemplo, foi um dos locais que eu fiquei a conhecer. Um local que estava muito presente na memória do João Rui.
JRGM – A atracção que ambos sentimos por aqueles trabalhadores, que mantêm vivas as antigas tradições chinesas, levou-nos a fazer a curta Alvorada Vermelha (2011), que antecedeu a longa de 2012. O mesmo fascínio aconteceu com Iec Long.
JPR – O João Rui sempre me descreveu a antiga fábrica de panchões Iec Long, na Ilha da Taipa, como um dos locais mais misteriosos da sua infância. Quando a visitámos, estava em ruínas. É assim que aparece em A última vez que vi Macau.
JRGM – Nessa altura o futuro da fábrica era incerto. Votada ao abandono durante décadas, a Fábrica de Panchões Iec Long é um testemunho de uma das mais importantes antigas actividades de Macau, o fabrico de panchões (uma palavra praticamente desconhecida em Portugal). Mas estava em risco de ser demolida. Líamos notícias contraditórias nos jornais de Macau. Seria demolida para dar origem a mais um casino?
Imediatamente percebemos que teríamos de voltar a Macau para filmar a Iec Long, preservar a memória. Ficámos felizes ao saber que o bom senso prevaleceu e que a fábrica não vai ser demolida e está a ser restaurada.
Para João Rui, que lá cresceu, excitação é a palavra que define como se sentia quando rebentavam panchões. “Fosse nas comemorações do Ano Novo Chinês, fosse durante o ano, nas inaugurações de edifícios ou estabelecimentos comerciais, e ainda antes de saber qual o significado do acto de rebentar panchões, sentia uma grande excitação. Aprendi com os meus amigos chineses que os panchões se acendiam com um pau de incenso (‘pivetes’, como lhes chamávamos) por ser menos perigoso, mas essa sensação de perigo e excitação estava sempre presente. Na altura podiam rebentar-se panchões por toda a cidade ou, pelo menos, era isso que eu e o meus amigos fazíamos, agora há áreas designadas para esse efeito, para evitar os incêndios que aconteciam com alguma frequência. Outra memória muito forte é o barulho ensurdecedor. E o cheiro. Acredito que só quem já viveu essa realidade compreende a que me refiro.”
Provocado pelos panchões, o estouro, que os macaenses acreditam espantar os maus-espíritos, pauta o início do filme. Na ilha da Taipa, nas ruínas da fábrica permanecem Teng Man Cheang, o guardião de 79 anos, e os fantasmas das crianças que não sobreviveram ao perigoso ofício. Mas, “Iec Long não é um filme sobre o fim de uma era em Macau, mas um filme ‘de género’, sobre uma fábrica de panchões povoada por fantasmas e pelas suas memórias.” diz-nos João Rui. E revela que “também não sentimos que o nosso interesse por Macau se tenha esgotado. Muito antes pelo contrário. Sentimos que a cultura chinesa e, num sentido mais lato, a Ásia nunca nos irão abandonar.”
O autor escreve segundo a antiga ortografia.

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