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A vida num só dia

Texto: NUNO GALOPIM

A edição em DVD do filme ‘Nick Cave: 20.000 Dias na Terra’, de Ian Forsyth e Jane Pollard, junta entre os extras alguns ensaios e atuações ao vivo, uma delas com a presença de Kylie Minogue.

É uma história de ficção, mas durante a qual se dizem muitas verdades. A descrição é de Nick Cave, no making of que vemos agora na edição em DVD de Nick Cave: 20.000 Dias na Terra, filme que elevou a um novo (e bem estimulante) patamar o gosto do cinema por contar histórias das gentes da música. Se os making of por vezes destapam o que vivia velado, revelando um pouco como o que faria aquele que nos mostrasse o que há para lá das cordas que fazem mexer as marionetas, a verdade é que também nos ajudam a compreender melhor o objeto da atenção dos filmes. E neste caso em particular como do que poderia ser um simples documentário sobre a gravação de um disco acabou por nascer um filme que está a meio caminho entre o músico e a obra, a construção de ficção andando de mãos dadas com a realidade, sem nunca perder de vista a mitologia que qualquer artista acaba inevitavelmente de criar em torno de si e do seu trabalho.

O relacionamento de Nick Cave com os realizadores era já antigo, uma vez que tinham já assinado o teledisco para Dig Lazarus Dig!!! (2007) de Nick Cave & The Bad Seeds e colaborado no documentário em 14 partes Do You Love Me Like I Love You. Antigos colegas na Goldsmiths (em Londres), Ian Forsyth e Jane Pollard, tinham até aqui vindo a criar uma obra essencialmente feita de curtas-metragens, algumas delas projetadas desde logo para espaços diferentes dos mais habituais numa sala de cinema, destinando-as a galerias e museus (o seu filme Anyone Else Isn’t You, de 2005, integra de resto a coleção da Tale). Esta foi a sua estreia nas longas-metragens. E dos jogos de confiança e entendimento entre a dupla de cineastas e Nick Cave nasceu um objeto invulgar, que reinventa a forma de encarar as entrevistas não como um mero exercício de diálogo mas como parte de uma narrativa, usando estratégias de surpresa da parte daqueles que colocam as questões, cientes também da segurança do entrevistado na hora de falar.

O filme encena o dia número vinte mil na vida de Nick Cave. Encena, sim. O escritório em que o vemos a trabalhar não é o seu. É um cenário pensado ao detalhe mas onde Nick Cave se senta a escrever como o poderia fazer no seu espaço habitual de trabalho. O arco narrativo corre ao longo do dia vinte mil. Mas os que ficaram para trás não se esgotam na montagem apresentada em ecrãs de televisão que vemos durante o genérico. Na verdade tudo o que acontece no dia vinte mil é o resultado desse com a soma dos 19.999 que o precederam. Entre solilóquios de carro, conversas com colaboradores – atuais ou antigos – como Blixa Bargeld, Warren Ellis (entre as enguias que serão o almoço) ou Kylie Minogue ou diálogos com o psicólogo ou arquivistas, Nick Cave mais não faz senão refletir sobre quem é e o que tem feito, como se de uma autobiografia com imagens se tratasse. Ao mesmo tempo as imagens captadas durante ensaios e gravações de Push The Sky Away (o sublime álbum de 2013 de Nick Cave & The Bad Seeds), juntamente com uma sequência registada ao vivo, ao som do pungente Jubilee Street (e nota aqui para o trabalho de montagem que cruza ali elementos de várias épocas como que a concentrar toda uma vida em palco numa canção) juntam o texto musical ao contexto da obra de que se fala.

Agora, ao reencontrarmos este filme em DVD, a ele se juntam como extras, além do making of, vários momentos da sequência da sessão (entrevista) com o psicólogo, ensaios em estúdio e atuações ao vivo, uma delas reunindo em palco Nick Cave a Kylie Minogue para cantar Where The Wild Roses Grow. Pena apenas que, durante o making of, quem fez a tradução tenha confundido uma referência de Blixa a uma atuação televisiva dos Birthday Party (a banda de Nick Cave anterior aos Bad Seeds) com a ida a uma festa de aniversário. Não terá sido exatamente a mesma coisa…

‘Nick Cave: 20.000 Dias Na Terra’
de Ian Forsyth e Jane Pollard
DVD Leopardo Filmes
4 / 5

1 Comment on A vida num só dia

  1. Esse tipo de erros de tradução tornaram-se cada vez mais habituais. Presumo que sejam resultado da lógica mercantilista selvagem do meio das empresas de tradução e legendagem, associado a um inescapável abaixamento do nível cultural de quem faz o trabalho – cultura, entenda-se, mesmo em termos de referências “pop”…

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