Como um novo raio de luz
Texto: NUNO GALOPIM
Podemos agora arrumar as noticias e comentários sobre a fuga para a Internet das novas canções ou a queda que ofuscou o que quase ninguém falou (que os Brits Awards são hoje uma premiação em tudo inconsequente). Mais até que a digressão que vem a caminho (e que, para já, não mostra uma data agendada por estes lados), a edição de Rebel Heart é talvez a mais importante notícia que Madonna nos dá de há muito a esta parte. Não por ser o seu 13º álbum ou pelo naipe de colaboradores que convoca. Mas porque, ao dar-nos o seu melhor disco em dez anos, mostra acima de tudo que é capaz de ser autora e intérprete de algumas das melhores canções pop do nosso tempo. E lembra que todas as notícias que davam outras vozes como candidatas a tomar-lhe o lugar mais dia menos dia não só eram exageradas como, ao incorrer no erro de comparar uma obra veterana com um caso pontual de sucesso, eram mais uma expressão da era dos 15 minutos de fama (que contrasta com a solidez com a qual Madonna alicerçou a carreira). Pena que por vezes ela mesma tenha sentido vontade para responder a quem ia entrando em cena, assinando nos últimos anos os dois maiores tropeções da sua discografia. Esses sim mais complicados que o tombo nos Brits.
Com efeito, e depois de um brilhante Confessions on a Dance Floor (2005), onde Madonna revisitava ecos das suas memórias de Nova Iorque, assinando mais um álbum onde os seus habituais diálogos entre a canção pop e a música de dança de aliavam de forma tão clássica como atual, tal e qual o haviam feito nos igualmente maiores Erotica (1992) e Ray of Light (1998) – em conjunto fazendo aquela que continua a ser a trindade de referência do melhor da sua discografia –, Madonna olhou em volta e desviou o foco das atenções de uma condução de ideias focadas na sua relação com o presente e o futuro próximo e reparou que havia novas vozes a somar êxitos e chamar atenções. Pela primeira vez, entre Hard Candy (2008) e MDNA (2012) vimos Madonna a seguir ideias em vez de ser quem as dita. Entre os dois álbuns mais desiguais e cheios de equívocos da sua discografia há momentos de luz. Canções como I’m A Sinner, Masterpiece ou Miles Away não silenciavam a matriz pop da sua identidade, mas entre o hip hop e derivados (escola Timbaland) de Hard Candy e as mais banais opções EDM (electronic dance music) de MDNA os dois discos somavam mais tiros falhados que exemplos de boa pontaria.
Rebel Heart não apaga em definitivo o que parece ser esse desejo em manter aberta a resposta a new kids que tenham chegado ao quarteirão. Mas o que aqui escutamos no menos entusiasmante Bitch I’m Madonna (com Nicki Minaj, num tema que ficava bem mais catita num disco seu) é exceção num alinhamento que retoma essencialmente a alma pop dos tempos de um Ray of Light, sobretudo em canções que cruzam uma certa luminosidade pop com as assombrações de que nos fala. E se o espantoso Joan of Arc – a sua melhor canção desde Hung Up – é uma continuação da reflexão sobre a intrusão dos media na sua vida pessoal a que as imagens que em tempos vimos ao som de The Drowned World/Substitute for Love aludiam, em muito do disco há um retomar de temáticas mais pessoais, muitas deles envolvendo a religião (como prática e também ética) e que definem, com os episódios mais festivos do disco, um mundo de contrastes que esse álbum de 1998 também contemplava.
Vale a pena escutar sobretudo a versão DeLuxe do álbum, onde surgem temas como Wash All Over Me, Messiah e o próprio tema-título, baladas e canções mid tempo que se juntam a canções igualmente inspiradas como Ghosttown, o refrescante Body Shop, a marca que encontramos em Devil Pray e ainda Hold Tight, estas duas últimas a retomar a grandiosidade pop das suas memórias da etapa Like a Prayer. Há marcas do presente entre um disco que retoma princípios clássicos da canção mas sabe dialogar com a contemporaneidade, sobretudo nas contribuições (úteis) de Diplo – o seu melhor novo colaborador desde Stuart Price – e Kanye West, a angulosidade que este talha na produção de Iluminati mostrando como é possível para Madonna ser atual na relação das electrónicas sem correr atrás dos menores denominadores comuns da era Getta e afins.
A capacidade em estabelecer pontes entre o presente (que quer olhar em frente, como em tantos discos históricos de Madonna) e o passado nota-se ainda em Holy Water, tema que retoma ecos de Vogue, que transporta para um palco electrónico e minimalista do nosso tempo.
Apesar de extenso – a versão DeLuxe soma perto de uma hora e um quarto de música – Rebel Heart é um disco que podemos entender na tradição do ecletismo pop com gosto pela exploração das arestas da nova música de dança que Madonna tão bem explorou em álbuns como Like A Prayer, Erotica, Ray of Light, American Life ou Confessions on A Dance Floor. Um exercício de contenção poderia ter reunido no espaço de um alinhamento mais contido uma concentração dos episódios mais suculentos e ter feito deste a quarta adenda ao melhor da obra de Madonna. Mesmo assim é claramente o seu melhor desde Confessions. E mostra que, num futuro em que decida ignorar concorrências que o não são, será capaz de continuar a fazer discos para integrar no songbook da música pop.
E se tantas vezes se fala em idade, que tal notar quantos, aos 56 anos, souberam até hoje manter uma carreira discograficamente marcante e uma vida em palco intensa sem recorrer a concertos feitos de velhos êxitos, espetáculos com novos arranjos, discos de versões ou com chuvas de duetos a que outros já recorreram? OK, estamos conversados. E quanto a Madonna, que seja bem regressada ao patamar em que a gostamos de ver.
“Rebel Heart”
Madonna
CD, LP e edição digital, Universal
4 / 5
Acho uma review bastante boa e lúcida. Contudo, Madonna sempre esteve no patamar (desde 1982) e nunca saiu. Alias, o patamar é seu! (Ninguém questiona o patamar de Michael Jackson, Elvis Presley, Beatles, Freddie Mercury… etc. Mas pelos vistos ser mulher implica todo um novo reportório de regras….)
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Não diga que ninguém questiona patamares desses outros nomes. Generalizar é coisa q raramente funciona quando se pensa depressa. Jackson teve uma discografia muito fraca pos Black and White. Elvis viveu momentos muito desiguais. Os Beatles de 1963 não se podem comparar aos de 1967. E dos queen não condigo gostar. A tese do ser mulher não dita regras para mim pelo menos. Quanto a achar q ela esteve sempre no mesmo patamar desde 1982 está no seu direito embora eu não condiga concordar. E sigo a obra de Madonna atentamente desde 82.
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