Madonna, Senhora, Dona
Texto: RITA REDSHOES
Em 1983, Madonna estreava-se com o seu disco homónimo e entrava sem pedir licença pelas salas de estar de todo o mundo. Entrava de videoclip através da televisão e inundava as ondas hertzianas com os primeiros singles. Alguns anos depois, apanhou-me a mim, menina de pouca idade, colada ao ecrã ou a comer a papa do pequeno-almoço, com a capa do vinil à frente, na esperança de que quando me tornasse mulher fosse tão bonita e tão famosa quanto ela. Ingénua, assistia ao pulsar da libertação sexual feminina por obra e graça de uma estrela Pop. Via o meu pai e os meus tios, visivelmente transtornados, a ouvirem uma loira que, não sei se gemendo, não sei se cantando Like a Virgin, explodia no autorrádio do carro. Pior, na televisão aparecia a sorrir, jurando ser “a material girl”, rodeada de homens dispostos a satisfazer-lhe qualquer desejo.
Cantei e dancei, em performances improvisadas para a família, com as minhas amigas de infância, temas como Like a Prayer ou Vogue, entoando as melodias com letras que tínhamos aprendido por imitação, sem consciência alguma do que significavam.
Certo dia, já adolescente, headphones nos ouvidos, ao som do grunge dos anos 90, recordo-me de dar de caras com um número da revista francesa Photo que o meu irmão coleccionava. Tinha Madonna na capa. A fotografia não era meiga. Pertencia ao livro Sex, concebido pela própria em 1992. Madonna aparecia em cenários e posições demasiado excêntricas para o que era a minha inocência desse tempo. Fechei a revista à pressa e sem jeito e durante anos afastei-me de tanta ousadia.
Se tivesse de falar desse dia, dessa revista que o medo me fez fechar, diria, hoje, que compreendo o meu tão grande susto: não tinha forma de compreender, nem tinha linguagem para descrever ou entender a atitude de Madonna. Faltava-me a consciência – a íntima e sentida consciência – de que as canções também podiam mudar mentalidades. Achava, então, que música e sexo não se deviam misturar.
Demorei anos a voltar a olhar para Madonna, sobretudo a voltar a olhar para ela com olhar de mulher, de uma quase mulher à procura da sua feminilidade e em estado de profunda interrogação de si mesma. Voltei-lhe às canções, às letras das canções, aos vídeos, às entrevistas. Aproximei-me devagarinho. Não era só o receio de voltar a ter impressões extremas. Sentia em mim, latente, outra dúvida: por causa dessa “material girl”, quereria também eu ser capa de revista e chocar o mundo?
Encontrei-me e encontrei a minha voz.
Em 2012, criei um espectáculo a que chamei The Other Women. Tinha um propósito: homenagear mulheres compositoras. Interpretei canções escritas apenas por mulheres que sempre admirei e sem as quais a minha identidade musical não seria aquilo que é.
Um dos primeiros nomes que anotei no papel foi o de Madonna. Mal acabara de o escrever e, fulgurante, sem hesitações, surgiu-me o título da canção dela que eu queria cantar. Foi o Express Yourself, cujo refrão final se repete e intercala com outro verso, “so you can respect yourself”.
Cantei-a várias vezes, sem medos nem vergonhas, e sempre na esperança de que, tal como eu há dez anos, meninas, adolescentes, senhoras até, sentadas na plateia, estivessem à espera de um pequeno, musical e vibrante empurrão para se tornarem apenas mulheres. Estariam? Espero que sim e que se sintam prontas para chocar o mundo se, em nome do respeito, ainda for preciso.
Eu vivi numa casa sem musica, por assim dizer. O que fez com que Madona nunca fosse parte da minha infância. Mas hoje reconheço o que o trabalho dela fez pelas mulheres na musica e pelo mundo.
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