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O sabor da liberdade

Texto: NUNO GALOPIM

Distinguido em Cannes com o Grande Prémio Especial do Júri em 2014, o filme ‘O País das Maravilhas’, de Alice Rohrwacher, é das propostas mais belas que o cinema nos deu a ver nos últimos tempos.

Delicioso… E não é pelas quantidades de mel que vemos filme fora, numa das cenas surgindo até uma pequena lagoa doce derramada no pequeno “laboratório” caseiro onde a produção familiar se faz, extraindo-o dos favos numa centrifugadora (que não é de todo da mais recente tecnologia) e guardando-o em boiões logo a seguir. Se as abelhas serviram de sugestão à realizadora Alice Rohrwacher para desencadear uma reflexão sobre a liberdade – porque, como ela mesma explicou em Lisboa, um apicultor afinal nunca tem nada, porque as abelhas estão sempre livres -, a história de uma família que vive da exploração de uma série de colmeias e produz mel acaba por revelar também o que pode ser uma expressão desse mesmo modo de ser livre, um bem cada vez mais raro e precioso numa era em que fazemos parte de um gigantesca teia global.

O País das Maravilhas é um filme leve e doce, mas nem por isso light, sobre os espaços de uma vida de subsistência onde não falta o que poderíamos ver como uma herança possível de uma certa identidade hippie, embora devidamente projetada para o início do século XXI. Eis uma família, com quatro filhas, habitando uma casa que já viu dias melhores, algures na Úmbria, no centro de Itália. São apicultores, produzindo mel num laboratório daqueles que a ASAE fecharia em enquanto um diabo esfrega um olho, mas que pelos vistos é saboroso.

Longe de querer fazer um panfleto sobre os valores da vida na província, as manufaturas caseiras ou os métodos tradicionais, O País das Maravilhas toma antes este cenário como terreno no qual assistimos à progressiva tomada de consciência de outros horizontes pela mais velha das quatro filhas de um homem de gestos às vezes pouco polidos mas coração justo e em cuja casa mora agora um rapazito ali colocado por um programa de reinserção de pequenos delinquentes. Gelsomina, a quem o pai um dia traz um camelo de presente, descobre num concurso televisivo, a potencial ajuda financeira para que a família dê um passo em frente na solidez da sua precária vida quotidiana. Ao inscrever-se descobre em si a força de uma vontade própria, também ela uma expressão do ato de crescer.

O programa de TV a que se candidata é um concurso que tem uma apresentadora com ar de personagem fabricada (numa bela interpretação de Monica Bellucci), procura eleger os fabricantes dos melhores produtos artesanais da região e explora, com um entusiasmo para inglês ver, velhas mitologias etruscas como caução de um sentido remoto de qualquer coisa que soe a tradicional.

Nos antípodas de Reality, de Matteo Garrone, o concurso aqui nem afoga nem transfigura a família nem a protagonista Gelsomina nem representa de todo o foco central da narrativa. É antes um corpo algo alienígena que irrompe entre aquelas vidas, representando sobretudo uma tentativa de busca de auxílio, um lançar de uma voz além da habitual pax familiar (algo isolada), mas sem querer comprometer nem o quotidiano nem a verdade da família de apicultores. Filmado com um olhar que se sente que sabe captar a realidade num registo documental (e as sequências entre colmeias são melhores que o filme sobre abelhas que recentemente vimos entre nós), mas vibrante de vida perante uma história que se revela com candura de uma bela fábula, O País das Maravilhas não é um retrato, mas antes um olhar livre sobre um modo de vida que, mesmo profundamente humano, parece coisa em vias de extinção entre a humanidade do nosso tempo.

“O País das Maravilhas”
Realização: Alice Rohrwacher
Com: Maria Alexandra Lungu, Alba Rohrwacher e Monica Bellucci
Distribuidora: Midas Filmes

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