Ser ou não ser Madonna
Texto: JOÃO LOPES
Qualquer leitor/espectador que alguma vez se tenha interessado minimamente pelo trabalho de Madonna não pode deixar de reconhecer que o entendimento do seu universo está minado por uma colecção de persistentes lugares-comuns, mais ou menos preconceituosos. E muito para além das matérias especificamente musicais.
Assim, por exemplo, a sua descrição como eterna candidata a actriz de cinema?… É verdade que Hollywood nunca a “inscreveu” na sua lista de eleitos, como o ilustra a muito discutida ausência nas nomeações para os Óscares referentes a 1996, com Evita, de Alan Parker, depois de o respectivo papel lhe ter valido o Globo de Ouro de melhor actriz (comédia/musical). Mas porque é que, a maior parte das vezes, esse dado omite o facto de You Must Love Me (Andrew Lloyd Weber/Tim Rice), tema do mesmo filme por ela interpretado, ter ganho o Óscar de melhor canção? E como avaliar a trajectória cinematográfica de Madonna esquecendo a sua participação num momento marcante da afirmação dos independentes como é Desesperadamente Procurando Susana (Susan Seidelman, 1985), numa experiência técnica e narrativamente revolucionária como Dick Tracy (Warren Beatty, 1990), ou ainda nesse singularíssimo retrato dos bastidores do cinema que é Dangerous Game/Linha de Separação (Abel Ferrara, 1993)?
Como sempre — a propósito de Madonna ou de qualquer outro universo artístico —, não se trata de fazer um inventário maniqueísta de “prós” e “contras”. Importa, isso sim, antes de tudo o mais, lidar com o facto de o próprio trabalho criativo ser indissociável de uma permanente atitude de interrogação das suas próprias lógicas, valores e opções formais.
Será preciso sublinhar que, nesta perspectiva, o álbum Rebel Heart constitui (também) uma espécie de inventário confessional de alguém que, aos 56 anos, sabe olhar para trás e repensar/reinventar as coordenadas do seu espaço pessoal?
O teledisco de Ghosttown constitui um esclarecedor sinal desse ziguezague (temático, temporal, simbólico) enraizado no movimento de Madonna. A começar pelo facto de ser a sua sexta colaboração com o sueco Jonas Akerlund, por certo um dos realizadores, a par de David Fincher, que mais decisivamente contribuiu para a definição do seu mundo visual e, em particular, videográfico.
Se pensarmos nos principais momentos da colaboração de Akerlund com Madonna — com inevitável destaque para a obra-prima Ray of Light (1988), mas sem esquecer Music (2000) e Jump (2006) —, encontramos sempre variações centradas na inscrição da sua personagem em paisagens citadinas, a meio caminho entre o efeito realista e o apelo mitológico. Ghosttown prolonga tal visão, agora numa breve fábula pós-apocalíptica em que, ao cruzar-se com Terrence Howard (figura nuclear da série Empire, de Lee Daniels), Madonna reaparece como figura errante de uma ânsia primitiva do aconchego familiar — veja-se, em particular, depois do “duelo” masculino/feminino, o aparecimento discreto, mas essencial, da personagem da criança.
Ghosttown pode mesmo ser visto como o fecho de uma trilogia familiar que começa com o teledisco de Secret (Melodie McDaniel, 1994), passando depois por Drowned World/Substitute for Love (Walter Stern, 1998), em qualquer deles com Madonna tendo como ponto de fuga dramático o assumir de um papel materno. Dir-se-ia uma continuada autobiografia alimentada pelas ambivalências e artifícios do entertainment — nela cabem os rostos e as máscaras que definem um modo de ser.
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