Ecos do Mediterrâneo, numa noite em Lisboa
Texto: NUNO GALOPIM
O que é a música do século XXI? Já o perguntei a figuras como o compositor Max Richter ou o violinista Daniel Hope, ambos com importante obra apresentada depois do ano 2000. Entre uma certa dificuldade em fixar uma resposta focada e a sugestão que vivemos numa área em que todas as músicas se cruzam manifestaram-se opiniões, afinal não muito distintas das que, aqui e ali, vão parecendo nascer da sugestão dos discos que nos vão mostrando o state of the art da música orquestral, de câmara e instrumental que se faz no nosso tempo. De rotulagem difícil, porque afinal se trata de experiências que refletem um tempo de comunicação de velocidade fulminante e abrangência global, a música do presente traduz vivências, escolas e interesses, juntando à genética cultural de quem a cria (ou seja, o seu aqui e agora) uma capacidade em juntar dados colhidos mais adiante, mesmo que escutados em fontes de outros tempos e outros lugares. E por isso, mais que chamar a Souvenance (álbum editado já este ano, pela ECM) um exemplo de world music (aquele rótulo fácil onde se arruma toda música que fica para lá das linguagens mainstream e mora no lado de fora das nossas fronteiras geográficas), tratemos o mais recente disco do compositor tunisino no mesmo plano em que se manifestam as obras de nomes como, além de Max Richter, Nico Muhly, Richard Reed Parry, Bryce Dessner, Johann Johansson e tantos outros que estão a construir um presente que ganha forma à nossa frente.
O sucessor do álbum The Astounding Eyes of Rita ganhou forma ao vivo na noite de ontem em Lisboa, juntando ao músico tunisino e aos músicos que completam o quarteto com que se tem apresentado, alguns músicos de cordas da Orquestra Gulbenkian, sob direção de Rui Pinheiro. Sentado, dobrado sobre o seu oud, acompanhado pelo (magnífico) pianista François Couturier, pelo baixista Björn Meyer e pelo clarinete baixo de Klaus Gesing, Anouar Brahem caminhou entre as sugestões de uma música sem barreiras que, de genética ancorada na cultura magrebina – que o oud reforça -, conhecem depois uma libertação face às geografias e tempos pelo tom jazzístico que define alguns dos fraseados e pela herança “clássica” que a orquestra de cordas depois junta ao todo. Escutava-se o Mediterrâneo. Entre referências de hoje e de outrora. Mas sem dúvida apenas possível no nosso tempo. E, apesar de tudo, sem uma geografia precisa.
À gravação (mágnífica, assinale-se, editada em disco já este ano pela ECM) a interpretação ao vivo acrescentou um fulgor que se manifestou sobretudo no encorpado marcar das sugestões rítmicas do baixo, no dedilhar intenso das cordas do oud, na suave mas marcante presença do piano – e que belos os módulos repetitivos que por vezes se destacam -, na voz melancólica do clarinete baixo e na discreta, mas irrepreensível, presença dos elementos da Orquestra Gulnbenkian. Os sorrisos trocados entre músicos, o entendimento entre o quarteto e a orquestra, os dois encores exigidos por uma plateia que aplaudiu em pé e a proximidade de um músico que aceitou fazer uma sessão de autógrafos no foyer, depois de quase duas horas de concerto, deixaram claro que aqui aconteceu um dos momentos altos da presente temporada de música da Gulbenkian.
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