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Cenas da vida real nos tempos da Idade Média

Entrevista por NUNO GALOPIM

Um livro novo da historiadora Ana Rodrigues Oliveira leva-nos aos espaços da vida quotidiana no Portugal dos séculos XI a XV. A família, as festas, a educação, os tabus e as minorias. Como se vivia então entre nós?

Um mergulho no tempo aos dias da Idade Média em Portugal, não entre os grandes feitos que a cronologia da história habitualmente recorda nem pelos grandes protagonistas de quem se muitas vezes se fala, mas entre as gentes que faziam do seu quotidiano a respiração natural de um país. Professora de história, com especialização na área de História Cultural e das Mentalidades, Ana Rodrigues Oliveira tem desenvolvido estudos sobre o papel da mulher e da criança, e que assinou já o livro Rainhas Medievais de Portugal, leva-nos em O Dia-a-Dia em Portugal na Idade Média a esse olhar diferente sobre o quotidiano português entre os séculos XI e XV. “Crónicas, cancioneiros populares, hagiografias, livros de milagres, iluminuras, fontes arqueológicas, legislação régia, concelhia ou religiosa como, por exemplo, ordenações, chancelarias, atas das vereações, livros de posturas e forais, sínodos e penitenciais” estão entre as muitas fontes consultadas que permitiram dar a conhecer aqueles tempos. Um estudo deste âmbito, explica a autora, “implica a exploração de uma vasta e dispersa variedade de fontes que devem ser analisadas, interpretadas e cruzadas tendo em conta o universo cultural e civilizacional em que se inseriu a sociedade medieval portuguesa”. Lançámos então uma série de questões a Ana Rodrigues Oliveira, procurando dar a conhecer alguns ecos do seu estudo e tentando estabelecer comparações entre hábitos e factos de então e algumas realidades do nosso tempo.

A ideia de uma conduta moralmente aceitável até que ponto era opressiva naquele tempo?
Como em todos os tempos e em todos os lugares, uma conduta moralmente aceitável tem sempre algo de opressivo e de repressivo. Dado que, nesta época, fruto da ignorância científica, a religião desempenhava um papel bem mais importante do que hoje na maneira de viver do homem medieval, a população, temente a Deus e à morte em pecado, preocupava-se em cumprir os mandamentos da Santa Madre Igreja, encarando isso como uma forma normal de vida e de redenção. O medo de cair em práticas consideradas pecaminosas funcionaria como um dispositivo regulador destas práticas. Tal como hoje, a infração a comportamentos civis (roubar, matar, violar, alcovitar, não ter um comportamento digno, como o caso das prostitutas…) era punida através da legislação do poder político (essas penalizações são visíveis, por exemplo, nas ordenações e nos forais) e a infração a comportamentos religiosos (não ir à missa, não batizar os filhos, não comungar…) punida através de penitências (ou, mais grave, da excomunhão), como é visível nos penitenciários medievais.

Quais eram os maiores tabus e como eram silenciados?
Talvez os de cariz sexual, entendidos como uma sexualidade desregrada como, por exemplo, ter relações sexuais em dias proibidos pela Igreja (como a Quaresma) ou de formas pouco próprias, como os que dormiam com as mulheres de outra maneira salvo “como a natureza demandava”. Também a contraceção e o aborto eram tabus religiosos penalizados pela igreja, manifestando os penitenciais e os catecismos do Portugal medieval grande severidade para os que procuravam mover e deitar o concebimento ante que seja vivo, ou que o fruto não seja concebido. Igualmente a prostituição, embora aceite e taxada pelo poder político, era remetida para ruas e bairros próprios, na tentativa de não se misturar com as pessoas “normais” e assim se silenciar.

Podemos comparar este regime de vida sob regras morais ao que hoje se verifica em estados não laicos?
Não me parece que sim, dado que nos estados não laicos atuais (e, como sabemos, eles não são todos iguais), de um modo geral o poder político e o poder religioso estão fortemente ligados, quando não são mesmo um único que aglutina os dois. Na Idade Média, concretamente na Baixa Idade Média, período alvo deste estudo, os dois poderes estavam perfeitamente separados. Se, em alguns reinados, o clero teve maior influência junto do rei, outros houve em que o rei lutou contra o poder da Igreja retirando-lhe poderes e privilégios. Tal como hoje, havia penas civis e penas religiosas, como já foi referido mais acima, mas os dois poderes estavam separados.

As diferenças de género definiam noções de hierarquia tal como o faziam os níveis sociais?
Muitos elementos do clero continuavam a afirmar a ideia da inferioridade da mulher em relação ao homem. Ela era, simultaneamente, um ser fraco que necessitava de proteção mas, também, à imagem de Eva, seduzida pelo diabo e sedutora do homem, a verdadeira culpada de todos os males que vieram ao mundo. Consideravam que casar, dar à luz e criar os filhos era a “profissão” das mulheres. Na centúria de Duzentos, S. Tomás de Aquino atribuía mesmo o aparecimento da mulher à necessidade de ajudante do homem na procriação e só neste aspeto pois, para as restantes obras, o homem encontrava melhor ajuda noutro homem do que na mulher. Na prática, este preceito/preconceito não se verificava. Mesmo no seio da nobreza, se as principais funções femininas continuavam a ser o casamento e a procriação, pois havia que propiciar alianças matrimoniais com linhagens de idêntico ou superior prestígio e, depois, manter e perpetuar essa linhagem, as mulheres, principal veículo da constituição dessas teias de união e solidariedade, tiveram um papel determinante. Através delas se negociavam tréguas e amizades, contratos e casamentos, gestão e transmissão do património. Se, de um modo geral, eram remetidas, jurídica e politicamente, para um plano secundário, no quotidiano isso não se verificava, nelas delegando os maridos o poder quando isso lhes convinha, fosse para se poderem ausentar das respectivas casas e propriedades (por exemplo, quando iam para a guerra), ou ainda em caso de morte prematura destes e durante a menoridade dos filhos.
Em relação à educação masculina e feminina no seio da nobreza existiam, na realidade, sérias diferenças sendo a educação do rapaz, de um modo geral, mais completa, variada e cuidada do que a da menina, destinada a casar muito cedo tendo, por isso, uma educação mais virada para a sua futura função de esposa e mãe. Não quer dizer que não fossem iniciadas nas Letras (até porque para rezar os saltérios era necessário saber ler), no Latim, na Música e num conjunto de comportamentos sociais, mas diferentes do rapaz.
Outra diferença verificada e acentuada nos tratados didáticos estava relacionada com a pessoa a quem devia estar a cargo a educação dos filhos. Atendendo a que a criação dos filhos do sexo masculino pelas mães era considerada um aleijão sobre todos, daí podendo resultar adolescentes fracos e efeminados, aconselhavam-se as mães a terem a seu cargo as crianças enquanto pequenas, confiando depois a sua educação a uma figura masculina (pai, aio, mestre…)
No povo, a mulher trabalhava ao lado do homem, quer fosse na agricultura, na oficina artesanal ou no comércio. A sociedade urbana era amplamente partilhada pelos dois sexos sendo significativa a igualdade social. As mulheres podiam estabelecer-se por conta própria e possuir tendas de comércio fosse por compra, herança ou emprazamento ao próprio rei. O labor da mulher do campo ou da cidade, embora constituísse um prolongamento das suas atividades domésticas, conciliando os seus deveres familiares com um trabalho produtivo e/ou assalariado não se pode ignorar, ombreando com o homem importantes tarefas nos vários setores de atividade.

O espaço para o prazer – o sensual, o das festas, o das comidas – como era encarado?
Ao contrário do discurso eclesiástico, que fazia da morte uma razão para que o homem orientasse o seu comportamento de uma certa forma, o dia a dia não era tanto assim. O próprio rei D. Duarte aconselhava a não temer a morte pois quem o fazia perdia o prazer da vida. A lembrança da morte, em vez de levar à repressão do prazer e da alegria, fazia vivê-los com mais intensidade. Se a religiosidade marcava o quotidiano medieval, a religiosidade popular exprimia-se de uma forma coletiva e estava relacionada com a celebração das cerimónias litúrgicas, das romarias e procissões, dos ciclos sazonais da natureza, dos ritos de passagem do homem pela vida (nascimentos, batizados, casamentos, mortes). Nestas festividades misturavam-se a devoção, a solidariedade, a fantasia, o lúdico, o sagrado e o profano, a música, a dança, o riso, a alegria, os excessos, tudo numa convivência que transpunha o privado familiar ampliando laços, convivialidades e sociabilidades. A festa era um extravasar de sentimentos que introduzia uma pausa no labor diário de todos, revigorando corpos e mentes.

A noção de tempo livre existia nesta época?
Creio que não com o conceito ou com a importância de hoje, mas, na prática, ele existia. A nobreza tinha muito tempo livre. Dado que a função principal do nobre era a defesa do território, em tempo de paz a sua ação baseava-se no exercício das armas e do corpo para os quais eram recomendadas atividades lúdicas como a caça. Esta era das mais queridas e praticadas pela nobreza nela chegando a passar semanas e meses. Justas e torneios eram outras formas simultaneamente de ocupação de tempos livres e de exercício. Igualmente o eram os jogos de mesa, nomeadamente o xadrez, entendido como um hábil treino de batalha. E aos serões não faltavam as distrações mais pacíficas como cantar, dançar, tocar um instrumento ou ouvir jograis.
Também os elementos do clero, embora lhe estivessem interditas ocupações que os afastassem dos seus deveres para com Deus, aderia aos divertimentos da nobreza (alto clero) ou aos do povo (baixo clero).
O povo que vivia em meio rural seria, talvez, o que menos tempo livre teria, atendendo aos múltiplos afazeres que lhe impunha uma agricultura pouco produtiva.
E nas cidades, se o toque do sino marcava a realização das orações e das atividades, marcava, também, o fim das mesmas e o preceito religioso do descanso dominical. Marcava, igualmente, o tempo de recolher a casa e fechar a porta para só a voltar abrir no dia seguinte ao toque da alvorada. As badaladas do sino indicavam, assim, os tempos da religião, do trabalho e do descanso, as horas canónicas e as horas laicas, tempos diferentes no mesmo repicar.

O que herda o dia a dia medieval da ordem romana que antes prevalecera no espaço europeu?
Entre outras heranças, a Baixa Idade Media herdou dos romanos, o sistema de villas, ou seja, a grande propriedade, fulcro da exploração rural, onde viviam o dominus com os seus familiares e, dispersas pela área da villa, se encontravam as casas dos camponeses que cultivavam a terra. Esta “villa” romana deu origem aos feudos. Também o Cristianismo foi uma influência romana.

Como foram assimiladas as múltiplas referências dos povos que depois aqui passaram, dos que vieram da Europa aos árabes?
Principalmente os árabes, pelo longo período que permaneceram no território que depois foi Portugal, deixaram inúmeras influências a vários níveis. Detentores de uma sociedade já muito desenvolvida à época, deixaram as suas marcas na agricultura, no artesanato, no comércio e na própria cultura. Foram importantes astrólogos e físicos, preferidos pelos portugueses, desde o simples elemento do povo até ao rei que, com frequência, recorreu aos seus serviços.

A coexistência de religiões no Portugal medieval tinha uma aceitação paga pelos mouros e judeus. Era vulgar noutros países ou fruto da nossa história? O que muda este modelo de convivência?
Esta aceitação e convivência, embora com estigmas de segregação a partir do IV Concílio de Latrão (1215), verificou-se, também, por exemplo, nos reinos vizinhos da Península Ibérica. No entanto, em Março de 1492, os Reis Católicos, Isabel de Castela e Fernando de Aragão, juntos pelo casamento e com os seus reinos unificados, quiseram unificar religiosamente a Espanha em torno da fé católica, um dos baluartes da construção do novo país. Decidiram, assim, expulsar todos os que não quisessem converter-se. Novas famílias judaicas entraram em Portugal, procurando abrigo, durante o reinado de D. João II. Só com D. Manuel a situação destas minorias se complicou, dado que, ao pretender casar com Isabel, a filha dos reis Católicos, esta se recusou a entrar no reino enquanto este não estivesse limpo de infiéis. Data de Dezembro de 1496 a primeira ordem de expulsão de judeus e mouros, tendo como prazo limite Outubro do ano seguinte. Após vários avanços e recuos, neste ano a situação ficou resolvida com o batismo de muitos judeus que por cá ficaram, apelidados, a partir de então, de cristãos-novos. Anos mais tarde, estes voltarão a ser perseguidos pelo Tribunal do Santo Ofício ou da Inquisição. Mas isso já serão outros tempos.
Esta convivência não só permitiu adquirir novos conhecimentos mas também promoveu uma maior tolerância entre estes povos cujos quotidianos se mesclavam.

O livro ‘O Dia-A-Dia em Portugal na Idade Média’, de Ana Rodrigues Oliveira, está publicado pela Esfera dos Livros.

2 Comments on Cenas da vida real nos tempos da Idade Média

  1. josecoutonogueira // Maio 2, 2015 às 10:01 am // Responder

    É da minha vista ou o artigo não trás as referências do livro – nome, editora e data de publicação?

    Gostar

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