1970. Em busca de uma identidade
Texto: NUNO GALOPIM
A aurora dos anos 70 na Alemanha assistia, em vários focos de ação, à emergência de uma mais clara ordenação das ideias musicais que ali tinham emergido em finais dos anos 60 como expressão não apenas da necessidade de reativar os impulsos criativos que a história política das últimas acabara por secundarizar mas também como reação à presença física de contingentes militares das forças que haviam vendido a guerra, que tinham evidente expressão na sugestão de uma cultura jovem sob claras marcas anglo-americanas.
Em Dusseldorf, não muito longe da fronteira holandesa e numa região industrial em franca recuperação, Ralf Hutter e Florian Schneider, que haviam recentemente deixado os Organization – através dos quais tinham gravado o álbum Tone Float, editado em 1969 – encontravam na paisagem da região e no tom económico que a caracterizava um nome para uma nova etapa. Escolhem Kraftwerk e começam a divergir das linhas mais livres (por vezes caóticas) de alguma da música experimental de então, afastando-se também da linha cósmica que caracterizava algumas das outras bandas suas contemporâneas.
Contando na formação com as presenças dos percussionistas Andreas Hohmann e Klaus Dinger (que pouco depois formaria os Neu!), o quarteto original entrou em estúdio em julho de 1970 para, em poucas semanas, e na companhia de Conny Plank (como produtor e engenheiro de som) criarem o álbum que asseguraria a estreia do novo grupo.
Sem vontade de captar referências a possíveis heranças anglo-americanas – que explicariam pouco tempo depois numa entrevista a Lester Bangs – nem nas formas musicais exploradas nem nos títulos das quatro faixas que fazem o álbum (todas elas apresentadas em alemão), Kraftwerk é um claro passo adiante do que Tone Float havia sugerido, mostrando um conjunto de ideias contudo mais em modo de busca que cientes de que tinham encontrado a resposta.
Ruckzuck, que abre o disco, é mesmo assim um dos raros temas dos Kraftwerk que podemos associar a uma ideia de rock progressivo, quer pela forma como tecem as linhas hipnóticas – dominadas pela flauta e pela guitarra (sim, naquele tempo Ralf Hutter tocava guitarra) – que definem a alma da composição, quer pela percussão que, tal como na seguinte (e mais planante) Stratovarius, revelam, apesar da cadência metronómica, uma sonoridade aproximada da que se vivia então entre bandas pop/rock. O lado B do disco abre contudo outras possibilidades. Megahertz revela um claro protagonismo de sonoridades electrónicas e em Vom Himmel Hoch sentem-se primeiros indícios de uma vontade de, com estes mesmos elementos, começar a definir uma ordem mais racional e arrumada das ideias.
Disco experimental, não vocal, feito de temas de extensão longa, Kraftwerk assinalou o encetar de um relacionamento do grupo com a recentemente formada editora Philips e revelou, na capa, primeiros sinais de uma preocupação no plano do design que a evolução da obra do grupo levaria bem mais adiante. Um cone de sinalização rodoviária – na primeira manifestação de um recorrente interesse pelo universo dos transportes – serviu de primeira imagem de marca do grupo.
Hoje, ao escutar Kraftwerk, acabamos inevitavelmente a procurar nele primeiros sinais que sugerissem o achar de um caminho mais firme que, em 1974, os acabaria por levar a Autobahn. Mas em 1970, ao mesmo tempo que nomes como os Tangerine Dream, Can e outros contemporâneos criavam um novo mundo de sons e sugestões, poucos poderiam imaginar que era daquele quarteto que emergiria pouco depois uma nova ordem que teria impacte global e mudaria a história da música popular.
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