Um ano no Eliseu
Texto: NUNO GALOPIM
Se falamos numa certa diluição entre as fronteiras do registo documental e da ficção em algum do cinema do nosso tempo, vale a pena reparar que o mesmo se pode aplicar a alguma da banda desenhada franco-belga que tem surgido nos últimos tempos. A juntar a uma série de graphic novels com alma de reportagem, um volume expressivo de livros tem entrado em cena nos últimos meses juntando a essa forma documentarística de olhar uma vontade em estabelecer também percursos narrativos, muitos deles colocando os próprios autores entre as personagens representadas. Foi assim que, há poucos meses, viajámos à Antártida com o brilhante desenhador Emmanuel Lepage e o seu irmão (um fotografo), em La Lune Est Blanche. Ou, já este ano, acompanhámos os trabalhos de arqueologia numa pequena ilha no Índico, que revelaram a história de um naufrágio de um navio negreiro em Les Esclaves Oubliés de Tromelin, de Sylvain Savola. Hoje focamos contudo atenções num registo que, se bem que aparentado a esta lógica, junta uma condimentação política adicional: que tal o retrato de um ano de vida no Eliseu, a sede da presidência francesa?
Com raízes que remontam ao século XVIII, o palácio – que conheceu várias fases de construção e campanhas de remodelação – acolheu em tempos Madame de Pompadour, foi casa de um dos irmãos de Napoleão I e residência do seu sobrinho depois deste ter sido eleito Presidente em 1848, antes do golpe de estado que dele faria o imperador Napoleão III (que se mudaria de armas e bagagens para ali perto, passando a habitar uma das alas do Louvre). Sede da presidência e redidência oficial do chefe de estado desde a III República (em finais do século XIX) o Eliseu é, mais que o seu principal inquilino atual, o protagonista de Le Château.
O autor do livro é Mathieu Sapin, autor que nos últimos anos publicou uma reportagem sobre o dia a dia no diário francês Liberation e uma outra sobre a campanha presidencial de François Hollande num registo semelhante. Le Château lembra essas experiências anteriores. E junta a descoberta das salas, departamentos e funcionários do Eliseu ao próprio labor do desenhador-repórter, não evitando naturalmente abordar alguns dos grande factos políticos contemporâneos ao período no qual teve acesso ao palácio, nomeadamente as eleições locais e europeias que revelaram resultados francamente desencorajadores para os socialistas.
Começamos por acompanhar Sapin numa visita ao consultor para a imprensa e comunicação, que acaba por abrir portas a uma entrevista de oito minutos com Hollande e a consequente autorização para fazer o livro. Salvo o bunker Jupiter, a que Sapin não teve acesso, visitamos com ele a sede do poder francês. Passamos pela sala de imprensa, fazemos um percurso guiado pelos principais salões, vemos como são preparados os momentos de uma comunicação à imprensa, questões de segurança, entramos nas cozinhas (para reparar que uma máquina de café é dada como o centro do Eliseu), na adega, conhecemos a florista e descobrimos um dojo na cave do palácio. Uma visita de Estado ao Azerbaijão e Geórgia e as receções ao presidente da China e à rainha de Inglaterra permitem depois ver como todos estes mecanismos de bastidores funcionam entre si.
Sapin usa diálogos com amigos fora do Eliseu, com jornalistas ou alguns dos profissionais que trabalham no palácio para juntar ao lugar, quem o habita e a experiência de o visitar um ponto de vista crítico, sem nunca esquecer um certo humor com que repara em pequenos detalhes que habitualmente passam a leste das atenções.
Como adenda aos percursos no Eliseu, o autor foi ainda a tempo de juntar ao livro um epílogo sobre os acontecimentos já de janeiro deste ano, na sequência dos atentados que colocaram o Charlie Hebdo nas primeiras páginas dos restantes jornais de todo o mundo.
Lançado há poucos dias em França, será curioso ver como, além de dar a conhecer o Eliseu, este livro poderá (ou não) contribuir para a construção de uma outra imagem do seu atual inquilino.
“La Château”, de Mathieu Sapin, é uma edição em capa dura de 134 páginas, lançada em França pela Dargaud.
Já tenho um. Mas ainda não o li 🙂
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