Últimas notícias

Percursos na Feira do Livro

Dia 17. Uma das coisas boas que a Feira do Livro traz sempre é a possibilidade de completar o stock de obras de alguns autores. E um dos que se poderá dizer que sai privilegiado é o brasileiro Rubem Fonseca, cujos livros é possível encontrar sempre a preços mais simpáticos nos stands do Parque Eduardo VII. Até há uns anos (poucos) era a Campo das Letras a fazer as honras da casa. Agora é a Sextante Editora, que agarrou o testemunho e tem feito a restante corrida com mérito – isto é, com edições bem paginadas, resistentes e com capas simples mas muito interessantes (ou bonitas precisamente por serem simples). E, diga-se de passagem, o escritor merece. Rubem Fonseca é um desses grandes génios vivos que passa um pouco ao lado da consagração um pouco por causa da sua visão do mundo, que é cínica, pessimista e de uma certa crueza na narrativa da violência do final do século XX. E ainda bem que passa ao lado dessa consagração universal, já que, como dizia Nelson Rodrigues, “toda a unanimidade é burra”. Um dos últimos livros que apanhei na feira foi José, que saiu em Portugal em 2012, apenas um ano depois de sair no Brasil. José, como o próprio nome sugere, se tivermos em conta que o autor se chama José Rubem Fonseca, é uma espécie de romance autobiográfico sobre a infância, adolescência e juventude do miúdo do título. Aliás, é um quase-romance, um exercício de escrita livre através dos labirintos e da fumaça da memória. Mas também não tem verdadeira preocupação historiográfica ou rigorosa durante essa viagem ao passado, já que, diz logo no início, “todo relato autobiográfico é um amontoado de mentiras – o autor mente para o leitor, e mente para si mesmo”. Para os fãs de Rubem, José acaba por não ser uma carta fora do barulho, já que está tudo lá: o violento choque entre a inocência individual e o primitivismo das relações humanas; o sexo; os livros; as mulheres. Há que ler sem tirar apontamentos. Ler com prazer e sem fazer o perfil psicológico do escritor. Até porque, como chegou a dizer Philip Roth: “Escrevo ficção e dizem-me que é autobiografia. Escrevo uma autobiografia e dizem-me que é ficção. Portanto, já que sou tão estúpido e eles são tão espertos, que decidam eles o que é e o que não é”. – J. S. S.

Não de todo o coração é o título da crónica que marcou o meu primeiro encontro com Manuel António Pina. Há uns anos, sentado numa qualquer sala de espera, ao folhear uma revista de jornal, cruzei-me com o texto. Gostei tanto que não resisti a arrancar a página da revista (às outras pessoas que passaram por aquela sala de espera, as minhas desculpas). Uns anos mais tarde, ao ver o documentário Um sítio onde pousar a cabeça, fiquei a gostar ainda mais do escritor, por falar com paixão e desembaraço da vida, numa humildade que me impressionou. Uns poemas soltos, que fui encontrando e, entretanto, Crónica, Saudade da Literatura, foram contribuindo para a descoberta. Pina desvalorizava o seu trabalho de cronista, mas é impossível ler as suas pequenas crónicas e não maravilhar com a capacidade de observação, a mordacidade terna, a limpidez da escrita. Este ano, entre as várias aquisições na Feira do Livro, a mais prezada foi a de Todas as Palavras, o livro de poesia reunida, lançado pela Assírio & Alvim. – Diogo Seno

Dia 16. Descobri-o há alguns anos quando a Cavalo de Ferro publicou entre nós a magistral coleção de contos reunida sob o título A Derrocada da Baliverna. O italiano Dino Buzzatti, que foi jornalista e tem uma escrita seca e que vai direta ao assunto, é um espantoso contador de histórias que explora, sobretudo, as noções de medo e ansiedade. Possivelmente esgotado, este livro de contos não surge mais no pavilhão da editora. Mas entre os vários outros títulos disponíveis há outros dois que podem justificar a (re)descoberta de Buzzatti. O Deserto dos Tártaros é talvez o seu romance de referência (e Valerio Zurlini chegou mesmo a assinar uma adaptação do texto ao grande ecrã). É a história de um militar colocado num forte numa fronteira e no qual nada se passa a não ser um histórico receio de que, um dia, uma invasão chegue por ali… Em Pânico no Scala, uma novela que se lê quase de um trago só, somos colocados no foyer e outros espaços do mítico teatro de ópera de Milão, mas numa noite em que as portas se fecham e se ouve falar de uma possível desordem lá fora, nas ruas… Se não conhecem, fica a certeza de uma boa descoberta. Do mesmo autor vi por lá ainda O Segredo do Bosque Velho e O Grande Retrato. – N.G.

Dia 15. Um dos maiores divulgadores que a história da ciência alguma vez conheceu, Carl Sagan chegou a muitos através da série Cosmos e dos livros que foi lançando ao longo dos anos, neles falando-nos do universo, das suas origens e exploração, de nós mesmos, debatendo em algumas ocasiões as grandes diferenças entre a crença e o conhecimento científico. Em 1985 aliou essa sua capacidade de falar sobre as questões da ciência a Contacto (ed. Gradiva), uma trama narrativa ficcionada, procurando assim, através de uma história e de um conjunto de personagens, debater algumas das grandes questões que tinham passado já pela sua obra científica. Ao romance, que tem como foco central a descoberta de uma mensagem provinda de um lugar distante do universo e a consequente construção da máquina cujos planos ali estão contidos, Sagan junta não apenas um conjunto de reflexões sobre o facto de não estarmos sós como propõe, entre os diálogos e ações dos dois protagonistas, uma série de outros debates, entre eles voltando a surgir as grandes diferenças de pontos de vista entre a ciência e a religião. Robert Zemeckis mais tarde levou Contacto ao cinema, chamando Jodie Foster ao papel principal – N.G.

Dia 14. Nos 40 anos do verão quente não faltarão oportunidades para recordar o que foi o Portugal de 1975. Para uma possível abordagem pela ficção sugiro um dos livros de que mais gostei de ler nos últimos anos. Trata-se de O Retorno, de Dulce Maria Cardoso, um relato vivo e pungente de um tempo em que muitas famílias se viram obrigadas a deixar vidas e pertences em África procurando começar novas vidas num tempo politicamente aceso e de ânimos exaltados. Em O Retorno a memória do que foi e o relato do que passa a ser chegam-nos pela voz de um rapaz, do seu olhar atento e em busca de sentidos para os factos e comportamentos tendo nascido um dos melhores momentos da ficção portuguesa sobre os dias que se seguiram à revolução. Acrescente-se uma boa capa (coisa importante), o que de resto é norma quando olhamos para o expositor no pavilhão da Tinta da China. – N.G.

Dia 13. A edição de literatura de ficção científica vive há já algum tempo entre nós um clima de dieta, num claro contraste com um tempo que, entre as coleções com lançamentos regulares através da Livros do Brasil (a célebre Argonauta), Europa-América e Caminho, juntando um ou outro título mais apresentado por outras editoras, os grandes autores e livros de referência eram presença mais regular nos escaparates das novidades. Hoje em dia temos de olhar atentamente ao caminhar entre os pavilhões em busca de algo novo, se é de ficção científica que falamos. Para uma busca, mais de antigas edições que de novos lançamentos – e têm sido poucos nos últimos anos –, nada como passar pelo stand da Europa-América, onde estão disponíveis inúmeros títulos da sua série de livros de bolso e também da coleção Nébula, ou então caminhar entre alfarrabistas, onde, invariavelmente, aparecem alguns títulos da Argonauta. Entre os que encontrei este ano estava ali o assombroso Um Estranho numa Terra Estranha, um dos títulos mais marcantes da obra de Robert A. Heinlein e uma peça não só importante como referência para a literatura de ficção científica mas também uma obra que reflete ecos da contracultura dos anos 60 na qual, de resto, desempenhou também o seu papel. – N.G.

Dia 12. Uma das mais interessantes descendências da obra de Jacques Martin – sobretudo lembrado como o criador de Alix – as séries de “viagens” que os desenhadores e autores que ainda hoje trabalham as personagens por si criadas são interessantes extensões às aventuras que encontramos nos álbuns, juntando olhares sobre as épocas em que cada um viveu recordando não apenas acontecimentos históricos, mas também a vida quotidiana de então, a arquitetura, as roupas, os transportes. Loïs foi uma das últimas personagens a emergir no universo de Jacques Martin. Vive em finais do século XVII, visita frequentemente Luis XIV em Versalhes e, entre os sete álbuns já publicados (o mais recente já deste ano) tem corrido meio mundo. Em paralelo a estas histórias surgiram já dois livros de “viagens” com Loïs, o primeiro levando-nos a redescobrir como, ainda no reinado de Luis XIII, um pequeno pavilhão de caça cresceu para, depois, se tornar no palácio de Versalhes. O segundo traz o jovem francês a Portugal. Assinado por Luis Diferr, Portugal (ed. ASA) é assim um olhar sobre o nosso país entre finais do século XVII e o século XVIII (há sempre uma liberdade na amplitude das datas abarcadas por estes livros), descobrindo, com um traço em tudo fiel à herança de Martin, memórias da Lisboa de então (onde ainda era residência real o velho Paço da Ribeira), passando depois por Mafra ou Tomar. Para quem gosta de BD. E de história. – N.G.

Dia 11. Uma raridade encontrada num dos stands de alfarrabistas presentes na Feira, e cuja existência eu desconhecia: a versão traduzida de Barry Lyndon, romance do século XIX que inspirou o filme homónimo de Stanley Kubrick (e que é uma das suas grandes obras primas). Uma pechincha de livro, com o poster do filme na capa, e que, para uma edição publicada por cá há quase 40 anos, encontra-se em ótimo estado, já que não foi utilizada nem “rabiscada”. Por outro lado, continua a ser triste reparar como certos alfarrabistas marcam livros banalíssimos a preços injustos: vários dos stands têm muitos dos números da colecção “Mil Folhas”, que se conseguem encontrar em todo o lado, e que saíram com o Jornal Público há mais de uma década, a pouco mais de quatro euros o volume. Tendo cada um desses livros esse preço visivelmente marcado na contracapa, havia necessidade de, à descarada, pedir cinco, seis ou mesmo sete euros por cada um desses livros? Por outro lado, na Hora H a conversa é outra: alguns títulos marcantes da História da Literatura, que neste caso podem ser apelidados de “calhamaços”, podem ser comprados a metade do preço em várias editoras (no Grupo Leya há, por exemplo, A Montanha Mágica e Os Buddenbrook, ambos de Thomas Mann, que me chamaram a atenção, tal como Catch-22 de Joseph Heller e Os Nus e os Mortos de Norman Mailer), numa seleção de títulos com desconto que parece algo matreira em alguns stands: fiquei com pena que a Tinta-da-China quisesse colocar com 50% todos os clássicos de capa dura que possui no seu catálogo, exceto aquele que eu queria: O Vento dos Salgueiros. Vale a pena também espreitar a secção de livros de bolso da Porto Editora: na Hora H, poderão comprar O Padrinho, de Mario Puzo (e outros títulos do escritor), a um preço bem convidativo, ou tantos outros clássicos (de autores como Júlio Verne, Rubem Fonseca, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco e Rubem Fonseca) em bonitas edições acessíveis e de qualidade. Tanto nas Horas H como nas restantes horas da Feira, surgem algumas oportunidades imperdíveis de leitura nas alturas mais inesperadas… – R. A. S.

Dia 10. Começo pela recomendação. Se estiverem a pensar comer alguma coisa mais substancial na Feira do Livro, não se rendam à primeira opção que aparece. Talvez porque os livros de receitas estão na berra, a oferta gastronómica é muita e vale a pena investigar as tendas e roulotes (chamam-lhes zonas gourmet e lounge…) nem que seja para evitar esperas e tropeções em zonas nevrálgicas. Não foi o que fiz, mas deveria tê-lo feito.Dia
Idealmente, gosto de fazer várias visitas à Feira do Livro mas a primeira, de reconhecimento, tende a ser à noite. Não será a opção mais consensual, a iluminação e o vento fresco não convidam, mas tem acontecido. Cheguei pelas 21, comecei pelo topo, descendo e fazendo scan aos pavilhões, a espreitar os destaques de raspão, parei no da Tinta da China (melhores capas!) mas apressei-me na direcção dos alfarrabistas, cá em baixo. A esta hora algumas zonas já estão escuras, mesmo que haja lâmpadas direccionadas, mas é nos alfarrabistas que costumam estar os livros mais interessantes. Foi assim que arranjei os meus Vernon Sullivan, grande número de Philip K.Dick e a maior parte das edições da Alice que tenho. São também ideais para sentir a dinâmica dos tempos e do sucesso. Harry Potter e Marion Zimmer Bradley estão aos molhos pelas bancas, ao lado de ciências ocultas, esoterismo, Astérix ou livros da Colecção Vampiro. Hits do passado que falam sobre as preferências de leitura e as mentalidades numa ou várias épocas. As muitas sombras de Grey far-lhes-ão companhia em breve, certamente. Muito do fascínio dos alfarrabistas está nessa capacidade de fazer rewind na nossa memória. Certos livros, ou certas capas, lembram-nos momentos particulares, ou fases da vida. Eu tenho várias fases, admito, alturas em que tendo a “especializar-me”. A fase ficção cientifica (já não há assim tantos livros da Colecção Argonauta nos alfarrabistas) a fase policial clássica (fiquei de olho nuns de Agatha Christie e nuns do Conan Doyle) mas como agora ando bastante interessada em ciência, acabei por comprar o “Mundos Paralelos” do Michio Kaku que, muito provavelmente, também irá parar aos alfarrabistas um dia destes, mas que ainda foi comprado no stand oficial da editorial Bizâncio a preço especial. Vou ter lá voltar para ver melhor o resto. – Isilda Sanches

Dia 9. Há qualquer coisa de prazeroso em já conhecer os cantos da feira. E não só os cantos do recinto mas, literalmente, os cantos dos pavilhões. Uma das verdades que, para mim, foi ficando escrita na pedra é a seguinte: a verdadeira Feira do Livro está nas “orelhas” das barraquinhas, naqueles tabuleiros laterais que servem para arrumar o que não é bonito nem apelativo nem recente. É aí que ainda resiste o conceito de “preço de feira”. E foi aí que me desgracei na última visita. Alguns deles merecem destaque. É o caso de México Insurrecto, de John Reed. Reed, como quase todos devem saber, é o autor de Os Dez Dias que Abalaram o Mundo, relato da Revolução Russa de 1917 e uma das mais importantes e objetivas (apesar de não neutra) obras sobre a tomada bolchevique do poder. Mas México Insurrecto é anterior (1914), e uma visão ainda mais crua do que se passara na revolta liderada por Pancho Villa: “Villa tem duas mulheres, uma doente, que o acompanhou durante os seus largos anos de proscrito, que reside em El Paso; a outra, jovem e magra como uma gata, que é dona da sua casa em Chihuahua”. O Povo do Abismo, também da Antígona, da autoria de Jack London, é uma das obras essenciais da não ficção americana de início de século, em que se abriu a janela para a forma como “a outra metade”, os excluídos da “Era Dourada”, vivia. Por fim, destaco uma bela descoberta: Estética da Canção Política, um ensaio de José Barata Moura contribuindo para a discussão em redor do que é esta coisa de fazer… uma canção política. Duas imagens deste dia me ficam bem gravadas na memória. A primeira é a de ter assistido ao Ronald McDonald (que por lá anda num pavilhão com o seu patrocínio) fora da personagem, embora completamente maquilhado. Falava com três adultos depois de uma selfie conjunta, e o resultado tinha qualquer coisa de Krusty. Assustador. A segunda imagem é a de me ver a descer o parque, findo o giro e com o sol já a pôr-se, carregado de sacos e saquinhos de livros, tal e qual uma jovem angolana de visita às lojas da Avenida de Liberdade. Com algumas diferenças, claro. Não só os meus gastos se mantiveram nos dois algarismos como, no fim, fui de metro para casa. – J. S. S.

Dia 8. Tendo em conta o atual panorama da edição livreira portuguesa, em que nem sempre é fácil encontrar um bom livro disponível nas livrarias, decidi aventurar-me pela base da álea direita do Parque Eduardo VII, onde estão situados os stands dos alfarrabistas, em busca da possibilidade de ser surpreendido por algum título menos óbvios. Acabei por encontrar dois que me chamaram a atenção: V., de Thomas Pynchon (numa edição de 2000 da Editorial Notícias, embora saiba que há uma mais recente, mas também mais cara, da Bertrand), e Uma Conspiração de Estúpidos, de John Kennedy Toole (já andava atrás deste há uns bons anos, depois de ter desaparecido das livrarias a edição da Terramar). Confesso que a curiosidade por Pynchon se acentuou depois de ter visto a adaptação ao cinema, por Paul Thomas Anderson, de Vício Intrínseco, mas sempre me fascinou a “mitologia” de escritor esquivo, recluso e avesso ao circo mediático em torno do autor de V. Já no caso do livro de John K. Toole, o que me interessa é a “alergia” do autor e do protagonista ao mundo moderno e a forma como esse mundo por vezes transforma em bodes expiatórios aqueles que possuem uma inteligência superior. De resto, a frase de Jonathan Swift em epígrafe resume bem a essência do dilema de Kennedy Toole: “Quando aparece no mundo um verdadeiro génio, é possível reconhecê-lo através deste sinal: todos os estúpidos se unem contra ele.” E Uma Conspiração de Estúpidos é genialmente divertido. Nuno Carvalho

Dia 7. Vale a pena lembrar que, antes de ter gravado o seu primeiro single e longe ainda de imaginar que seria a primeira figura revelada pela geração “punk” nova-iorquina a editar um álbum – o histórico Horses, de 1975 – Patti Smith era já um nome conhecido entre os meios literários da cena alternativa que borbulhava na cidade. Na verdade, entre 1972 e 73 – ou seja, antes da música ter levado o seu nome mais longe – Patti Smith tinha já lançado três livros de poemas em pequenas editoras locais. Não é desses poemas que vive Apenas Miúdos, o seu mais recente livro de memórias. Mas é desses tempos que trata. De tempos que precedem a forma como o CBGB foi um dos mais pequenos palcos que o grande mundo escutou com atenção. Recorda antes dias de vivência numa cidade com mais sede de viver e de criar que com grandes orçamentos, e lembra sobretudo a enorme afinidade, cumplicidade e partilha de ideias, emoções e acontecimentos com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, que mais tarde assinaria a imagem usada na capa de Horses. É uma memória de juventude que capta um tempo vibrante na história de ambos e da cidade que lhes serve de cenário. O livro teve tradução entre nós pela Quetzal, onde já foi “livro do dia” nesta primeira semana da Feira do Livro. – N.G.

Dia 6. É difícil conseguir ver toda a Feira do Livro. Mesmo que estejamos presentes durante todos os dias da Feira, desde o início até ao fecho dos stands, haverá sempre qualquer coisa que nos conseguirá escapar – e que até poderia ser do nosso interesse. De ano para ano isso ainda se agrava mais, ou porque os nossos gostos vão mudando, ou simplesmente porque procuramos editoras diferentes. Constato que há boas surpresas a descobrir nos alfarrabistas, livros cuja existência eu conhecia, em anos anteriores, mas que só agora é que são apelativas ao meu paladar literário. Mas é preciso ter cuidado ao escolher os livros, já que há muitos romances que vários desses pavilhões têm em edições semelhantes, mas que são marcados com preços muito diferentes de alfarrabista para alfarrabista – e as diferenças chegam, por vezes, a níveis absurdos. Em mais um dia de Feira, numa semana que se inicia com muita tranquilidade, deambulei pelos pavilhões a conhecer muita gente ligada ao mundo dos livros, e a trocar impressões com alguns editores responsáveis por livros que admiro. Nesses momentos de cavaqueira, povoados por momentos bem humorados entre vendedores e clientes, até propus a um deles que se reeditasse um certo livro que, em Portugal, só mereceu uma tradução no princípio dos anos 60, feita por uma editora demasiado rebelde para aquele tempo: falo do magnífico “Exército de Sombras” de Joseph Kessel, a minha mais recente leitura. E no meio disto tudo, ainda fiz uma descoberta curiosa. Encontrei o autor de um livro que povoou o meu imaginário na meninice: Fernando Cardoso, que fez diversos livros para crianças e O Convite do Gato das Botas em particular (percebi quem era quando vi a capa desse livro exposta na mesa da sua sessão de autógrafos). Foi engraçado, e algo nostálgico, trocar palavras com este senhor tão simpático, que teve a gentileza de falar comigo enquanto eu me lembrava, a pouco e pouco, da história desse livro. Conversámos sobre memórias de infância e do futuro – é um autor que está muito preocupado com os hábitos de leitura das novas gerações, dominadas pelos jogos de vídeo. A Feira do Livro é um sítio de bonitos (re)encontros improváveis.- R.A.S.

Dia 5. O libertino passeia pela Feira, a idolátrica, o seu esplendor. Pelo menos, foi do Luiz Pacheco que me lembrei quando entrei na Feira do Livro ao final da tarde de 1 de junho, Dia da Criança. Não podia haver maior contraste. De um lado, a festa. A feira estava repleta de garotada, com suas mamãs extremosas a gritar pelos meninos (“Domingos, venha cá!”), com seus papás ainda metidos no fato do banco e pretensamente desinteressados no que as filhas tanto desejavam ao ponto de quase lhes arrancar a mão com os puxões. Do outro lado, eu, desleixado e melancólico, de camisa a roçar a estética havaiana (ou, pelo menos, nos arredores dos padrões das camisas de Malangatana), arrastando-se parque acima para visitar os pavilhões obrigatórios, normalmente com livros de assuntos circunspectos e profundos e essas coisas que os adultos encerram nos armários altos. Pouco enérgico, fiquei-me pelo “corredor” esquerdo, onde ainda tive tempo de apanhar duas pechinchas nos manuseados da Antígona, um dos pavilhões obrigatórios: Portugal de Relance, de Maria Ratazzi; e Outono alemão, de Stig Dagerman. E pouco mais, porque os tornozelos, a cada ano que passa, aguentam menos meia hora de passeio. Esta foi a segunda visita, já que a primeira, há poucos dias, acabou nos petiscos e numa sangria barata sem álcool (lembro-me apenas de ter aproveitado para pegar no único desconto que valia a pena dentro das muralhas da Porto Editora: a História Natural do Futebol, do Álvaro Magalhães, com chancela da hoje moribunda Assírio & Alvim). Não por acaso, neste Dia da Criança, disse “até logo” à feira com a convicção de que as gentes dos pavilhões estão cada vez mais novas, e as caras familiares cada vez mais raras. Exceção feita à carantonha da Antígona. Do logotipo, claro. – João Santana da Silva

Dia 4. Todos temos um livro preferido (ou uma mão-cheia deles). E o meu é O Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, aquela visão arrumada e planificada de uma humanidade criada (e desde logo estratificada) in vitro que nos faz no fundo pensar onde mora a essência daquilo que somos e refletir sobre onde devemos colocar o limite à ação da ciência, tecnologia e política face a nós mesmos. A Antígona incluiu há não muito tempo uma tradução do livro no seu catálogo. E nestes últimos anos alargou a presença de Aldous Huxley entre os seus livros (todos eles sob um magnífico trabalgo de design gráfico) publicando também títulos como Regresso ao Admirável Mundo Novo, A Ilha, uma antologia de contos e As Portas da Percepção. Se O Admirável Mundo Novo representa, juntamente com o 1984 de Orwell e Farenheit 451, de Ray Bradbury, aquilo a que chamaria a Santíssima Trindade das distopias, já As Portas da Percepção, livro no qual Huxley descreve as sensações e efeitos de uma trip de mescalina, pode ser encarado como peça significativa da cultura popular dos anos 60, com particular reflexo na história da música pop/rock. Afinal foi a este livro que os Doors foram buscar o seu nome. Espero que a coleção não acabe aqui… Pelo caminho há, por exemplo, um Eyeless in Gaza que merecia estar disponível entre nós.– N.G.

Dia 3. Este ano não houve novos lançamentos a juntar aos quatro já antes publicados. E esses quatro lá estão, com um preço apetecível, no stand da Quetzal. Falo em concreto da obra de Christopher Isherwood, escritor de berço inglês e vida essencialmente feita nos Estados Unidos, mas que nos anos 20 e início da década de 30 (do século XX) passou por Berlim, cidade cuja respiração de então tão bem captou em títulos como Adeus a Berlim ou Mr. Norris Muda de Comboio (ambos já traduzidos entre nós) ou no mais claramente autobiográfico Christopher and His Kind, ainda à espera de uma eventual tradução. Na verdade toda a obra escrita de Isherwood revela fortíssimas marcas autobiográficas, representando muitas das figuras e lugares das suas histórias berlinenses ecos diretos de pessoas e espaços que fizeram a sua vivência na cidade. As histórias de Berlim de Isherwood (muitas vezes surgem ambas reunidas num mesmo volume) traduzem não apenas o sentido de liberdade que se respirava nos tempos da República de Weimar, permitindo contudo assistir ao progressivo ganhar de terreno dos nacionais socialistas na política alemã de então. Vale a pena lembrar que estas histórias terão representado um dos motivos pelos quais, em meados dos anos 70, David Bowie resolveu ali rumar para, por alguns anos, fazer da cidade a sua casa. A casa onde Isherwood viveu em Berlim está hoje identificada com uma placa, em Nollendorf Strasse. No stand da Quetzal estão ainda disponíveis as traduções de Encontro à Beira Rio (um romance epistolar com cenário na Índia) e Um Homem Singular (o livro no qual se baseou Tom Ford para criar um dos grandes filmes dos últimos anos). – N.G.

Dia 2. O primeiro dia na Feira do Livro de Lisboa é ainda um “aquecimento”. Percorro para cima e para baixo todos os stands, conhecendo novas editoras ou reencontrando livros que, há muito tempo, tinha perdido de vista. Mas o meu maior interesse reside nas promoções das minhas editoras preferidas: a Relógio de Água tem, como já é habitual, um balcão com ótimas promoções, quer de clássicos universais como F. Scott Fitzgerald e Evelyn Waugh, como de outras propostas mais alternativas de leitura – todas a um preço muito convidativo. A Antígona, uma das editoras mais interessantes de Lisboa, continua em força a publicar livros “revolucionários”: destaco, principalmente, a obra do autor Albert Cossery, pouco celebrado por cá, mas que merece sem dúvida ser descoberto. Um escritor com um método de trabalho muito peculiar, que ao longo da sua vida publicou menos de uma dezena de obras, todas elas traduzidas pela Antígona em edições perfeitas e com preços imperdíveis na Feira (só o seu último livro, As Cores da Infâmia, o primeiro que li, é que se encontra de momento esgotado). Uma pequena tristeza foi ver que a Porto Editora comprou parte do catálogo da Livros do Brasil, mas deixou de fora edições antigas das coleções Argonauta e Vampiro, que nos anos anteriores, essa editora vendia ao desbarato no seu próprio stand. No entanto, há uma distribuidora presente na Feira que tem muitos restos de stock da coleção “Dois Mundos” – vale a pena aproveitar. Já a Europa-América continua a fazer preços escandalosos para edições em mau estado – quando é que isto irá parar? Por fim, começam-se a fazer as wishlists para a Hora H, que só começa na segunda-feira. Parece-me que, este ano, há promoções mais convidativas (e ao mesmo tempo, mais discretas) do que em anos anteriores. Mas a “escavação” de cada stand presente nesta 85.ª edição da Feira do Livro poderá ser muito compensadora! – Rui Alves de Sousa

Dia 1. Cada um tem as suas rotinas na Feira do Livro, umas de folhear outras de mastigar. Entre as minhas estão várias visitas aos pavilhões dos alfarrabistas, nos quais vão surgindo algumas preciosidades ou boas memórias. E num 2015 que assinala os 70 anos do fim da II Guerra Mundial lembrei-me desta série de BD que a Bertrand lançou entre nós em finais dos anos 70. Com texto e desenhos de Pierre Dupuis, os álbuns transportavam-nos a alguns dos mais célebres cenários do grande conflito que assolou o mundo entre 1939 e 45. Lembro-me de, nos tempos de escola, descobrir assim o que fora a campanha polaca dos alemães em 1939 ou a guerra em solo russo, em títulos como Blitzkrieg: Tempestade sobre Varsóvia, A Batalha de Inglaterra: Operação Dínamo ou Moscovo: Operação Barbarossa. Ontem encontrei entre um dos pavilhões este A Resistência: Os Exércitos da Sombra. Em 46 pranchas o livro recorda alguns focos mais emblemáticos das várias forças de resistência que surgiram contra os invasores alemães. A resistência francesa é aqui a mais vezes citada, numa narrativa que evoca o contexto e nele coloca algumas personagens e situações ficcionadas, que evoluem a par e passo com factos reais. Há ainda incursões pelo que é a atual República Checa, recordando o atentado contra Heydrich e a luta da resistência italiana que terminou com a morte de Mussollini… Acho que vou lá buscar os outros volumes. – Nuno Galopim

4 Comments on Percursos na Feira do Livro

  1. Excelentes sugestões … a propósito, alguma alma caridosa me pode informar se pela feira, ou fora dela, se consegue avistar o livro do Alex Ross – “O Resto é Ruido”. Procuro isto faz muito tempo. Sei também, segundo li, que é um dos autores de eleição do Nuno Galopim. Obrigado e parabéns pela qualidade dos posts.

    Gostar

  2. Obrigado João. Vou por lá passar. Já procurei no site da Leya, já telefonei para a editora. Nada. Está, segundo informam, fora de circulação. Será que nestes casos os livros podem reaparecer na feira? Para escoamento de stocks … é isso?

    Gostar

    • A edição pela Casa das Letras não teve o impacte que merecia. Não a vi na Feira… Mas pode ter-me escapado aos olhos… A versão inglesa é de leitura bem acessível e essa encontra-se com facilidade nas lojas online. – N.G. (abraço e boas leituras)

      Gostar

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

%d bloggers gostam disto: