Como soa a propaganda, décadas depois?
Texto: NUNO GALOPIM
Estávamos bem arranjados se tivéssemos de aliar qualquer reencontro uma obra de arte nascida com intenções de propaganda apenas sob uma lógica de inevitável aceitação do quadro ideológico que tenha ditado a sua criação. Um programador de um ciclo de cinema que juntasse o Triunfo da Vontade de Leni Riefenstahl e o Couraçado Potemkin de Sergei Eisenstein sofreria de esquizofrenia política? Só podemos pois encarar como uma ainda não resolvida relação com a história o facto de que, quando preparava a apresentação de um conjunto de cantatas de Dmitri Shostakovich (1906-1975), o maestro estoniano Paavo Järvi tenha sido confrontado com receios de relapso estalinista, uma vez que as trabalhava não com os textos revistos na era de Brejnev, mas com aqueles com quais as obras originalmente nasceram. Longe de aclamar o velho ditador soviético, o que o maestro promovia era afinal o reencontro com a verdade lírica de uma música poucas vezes apresentada no presente. E que, no fundo, traduz ecos de um tempo que a história acabará por assimilar, como o fez com as expressões de exaltação de tantos outros líderes, não significando por isso que subscreve as suas ideias e feitos.
Tem assim um valor histórico, além de musical, o lançamento que a Erato agora faz de cantatas de Shostakovich que o maestro Järvi apresenta em gravações em que dirige a Orquestra Sinfónica e Coro da Estónia. O disco junta três obras orquestrais vocais, entre as quais o magnífico Canto das Florestas, obra que nasce num dos momentos de maior tensão entre o poder soviético e aquele que foi o maior compositor que viveu sob o seu jugo. Acusado de ser anti-soviético em finais dos anos 40, sobretudo pelas demandas formais que expressara nas (magníficas) sinfonias compostas após o fim da II Guerra Mundial, o compositor – que anos antes, por ocasião da sua Sinfonia Nº 7 (Leninegrado), tinha mesmo sido dado como um exemplo maior de patriotismo e resistência – estava agora obrigado a um pedido de desculpas público. Em 1949 Shostakovich compôs uma oratória de grande fôlego, tendo por base um texto do poeta Yevgeny Dolmatovsky, pelo qual se exaltava o trabalho de reflorestação conduzido desde a Rússia à Sibéria pelo regime de Estaline depois do armistício. A obra, que mereceu o Prémio Estaline em 1950, não deixa de ser – como o foi tanta da criação artística ao longo dos tempos – um exercício de propaganda. Mas vale a pena transcender o sentido do tempo e do texto e entender os valores musicais que fazem desta uma das grandes peças corais de meados do século XX. E, se nos abstivermos da ideologia subjacente e daquele que a personalizava, até estamos em tempo de reconhecer que a reflorestação de algumas áreas do globo nos dias que correm não precisa apenas de cantatas que a estimulem, mas também de factos concretos no terreno.
O alinhamento deste disco junta outras duas obras vocais de Shostakovich, embora de menor escala. Ainda criada sob um claro programa político a cantata O Sol Brilha Sobre a Nossa Pátria (de 1952) é, novamente com um texto de Dolmatovsky, uma alegoria sobre o futuro forte que o regime tem pela frente, sublinhando a sua tenacidade pelos jogos de entendimento entre vozes e metais. Bem diferente é A Execução de Stepan Razin. Composta em 1964, já sob o mandato de Khrushchov (e perante alguma abertura a novas formas, o que permitiu ao compositor o assumir de alguns riscos), evoca uma revolta cossaca no século XVII e troca o tom épico das outras duas por um patamar mais atento à criação de uma outra atmosfera e tensão narrativa.
Os textos que, na imprensa da Estónia, acusavam Jäarvi de possíveis manobras políticas padecem daquele fulgor com o qual vivemos memórias traumáticas recentes. A de Estaline, admito, não será de digestão fácil. Mas o mundo ganha com esta magnífica gravação. E não perde ao reencontrar a verdade de um discurso político que, por vias cruzadas, pode até ter outras possíveis interpretações no presente. Vendo bem, pode fazer pensar. E esse é o lado que a arte de propaganda não visa no primeiro impacte. Mas que, com o tempo, acaba por promover, e muitas vezes fazendo voltar feitiços contra os feiticeiros. Nem que pela leitura crítica que acabamos por fazer ao confrontar a arte com os ecos da história.
O álbum “Cantatas”, com obras de Dmitri Shostakovich interpretadas pela Orquestra e Coro Nacional da Estónia, sob direção de Paavo Järvi, acaba de ser editado em CD pela Erato e está igualmente disponível em plataformas digitais de download e streaming.
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