Tori Amos nos braços de Barcelona
Texto: VERA RODRIGUES, em Barcelona
Em Sevilha, quando filmou um teledisco, disse que não compreendia as pessoas através da língua mas que ficava muito tempo perto delas, por vezes de mãos dadas, olhos nos olhos, e criava assim a ligação com os espanhóis que ia encontrando. Em finais de maio, num soalheiro sábado que fechou a 15.ª edição do Primavera Sound de Barcelona, pisou a sala de imprensa como uma sereia a encantar os marinheiros, uma figura mitológica de atração sobrenatural. Ao mesmo tempo que os jornalistas se apertavam todos uns contra os outros, para a deixar passar, era necessário sentir outro ser humano de forma a validar a realidade de que Tori Amos estava mesmo ali à nossa frente.
Altiva por natureza, doce por opção, sensível por vivência, foi assim que foi chegando, pedindo desculpa por estar uns minutos atrasada. Sentou-se e começou imediatamente a falar, respondendo a perguntas urgentes mesmo sem o microfone ligado. Ultrapassado o problema técnico, continuou. E de uma forma que a maioria dos presentes não esperava. Numa sala cheia de jornalistas de várias nacionalidades, a ninfa ruiva abriu o coração. Falou do poder da música como arma contra os traumas que a vida vai oferecendo, sobre a sua violação e o quão importante esse momento foi para a construção de toda uma personalidade artística e pessoal, que anda de mão dada com a entrega em busca de uma conciliação com o mundo, em palavras de uma profundidade que não deixou um único par de olhos secos dentro da sala.
“A minha música conta uma história mas, quando a torno pública, outras histórias de outras pessoas são acrescentadas à minha música e ela está em constante mutação. Quando me abordam na rua, mulheres, agarram-me, olham-me nos olhos e dizem «eu também passei pelo mesmo, eu sei exactamente ao que te referes naquela música», e contam-me a sua história. A partir daí essa história faz parte da música, e todas as milhares de histórias de milhares de mulheres que se identificam com a música, fazem parte dela. Então ela deixa de ser minha e passa a ser um recipiente que alberga a energia dessas pessoas e todas as suas histórias e transforma-se em algo grandioso”, disse, emocionada, sobre Me and a Gun.
O ar de repente ficou mais denso, a cabeça mais leve, uma sensação de desmaio bom apoderou-se da sala. Hipnotizados ficaram os jornalistas com tudo o que Tori Amos dizia, como se da sua boca saíssem setas de entorpecente emoção diretas ao coração. Fala mais, conta mais, partilha mais!
Lá do fundo, surge uma voz que lhe pergunta o que é para si a ideia de dar tudo em palco. A resposta: “Para ser honesta, qualquer escritor, seja de música, sejam vocês, jornalistas, que também são escritores, tem de estar conectado com a vida, com as pessoas reais. Temos de nos expor às histórias para as contar. E, principalmente, temos de ouvir. Eu estou aqui a falar sem parar mas normalmente prefiro ouvir. Ouvir o que as pessoas têm para me dizer, há lá história, há uma canção. Por isso, dar tudo de mim, é ouvir e ouvir sempre”.
E alguém quebra o encantamento com um “terminou o tempo, acabou a conferência de imprensa”. Apressadamente Tori Amos põe travão à ordem oficial: “Só mais umas perguntas, estou mesmo a gostar disto”. Alguém menciona Promise, do mais recente álbum Unrepentant Geraldines, o tema que fez com a filha Natasha, na altura com 13 anos, no auge da adolescência. Mãe e filha prometeram ouvir-se, numa altura em que por vezes nem os pais nem os filhos se ouvem. “Prometemos estar lá uma para a outra, sempre, mesmo que não nos compreendamos”, declarou.
O concerto teve depois lugar no palco Ray Ban, em forma de anfiteatro no recinto do Primavera Sound Barcelona 2015. Com o espaço lotado e em ambiente de profunda comunhão, a multidão entoava todas as canções que conhecia e notou-se a afeição transversal a várias idades, com homens, mulheres e adolescentes emocionados.
Cornflake Girl, Silent All This Years e até uma versão de In Your Room dos Depeche Mode transformada maravilhosamente numa canção sua, foram presentes num pôr-do-sol na Catalunha.
Munida do seu piano de cauda e um teclado de onde lançava batidas eletrónicas, Tori Amos dominou o palco sozinha com a mestria e naturalidade de quem nasceu artista. “Discordo de quem diz que isto é um trabalho. Isto não é um trabalho, é um privilégio. E enquanto artista é uma responsabilidade. E o que é isso? A definição varia de artista para artista mas é um privilégio”. Dizem que não sabe ler pautas de música… “Y Kant Tori Read” (assim se chamava a banda onde militou ainda nos anos 80). Qual é o mal?
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