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Hoje, há 30 anos

Texto: LOURENÇO ROCHA

Há 30 anos um grupo católico invadiu a projecção de “Je Vous Salue, Marie”, na Cinemateca. E agora a pergunta: como vai a liberdade de expressão hoje?

Pormenor da primeira página do DN de 30 de Junho de 1985

Em Junho de 1985 a Cinemateca Portuguesa dedicava um programa a Jean-Luc Godard. Para o dia 29 agendou Je Vous Salue, Marie (Eu Vos Saúdo, Maria), estreado internacionalmente nesse ano sob condenação da comunidade cristã. No filme, Maria, uma rapariga suíça e casta, recusa-se a dormir com José, seu namorado. Uma personagem chamada Tio Gabriel anuncia a Maria que ela vai engravidar, apesar de virgem. José repudia-a ao início. Uma crítica do NY Times considerou a obra uma “tentativa séria de examinar as relações entre os homens e as mulheres e a possibilidade de relações profundas não baseadas em sexo”. No Brasil, o presidente José Sarney baniu o filme, e o cantor Roberto Carlos saudou então a decisão. Por cá, semanas antes da data, Nuno Krus Abecasis, então presidente da Câmara de Lisboa, prometia à Agência de Notícias Portuguesa “escavacar tudo se o filme fosse exibido”. Por outro lado, o Secretariado do Cinema e da Rádio do Episcopado adoptava uma posição menos extremista, recusando um boicote ao filme.

No dia, cerca de meia centena de manifestantes responderam ao repto de Krus Abecasis. Francisco Grave, que à altura era aí projeccionista, recordava em 2011 que João Bénard da Costa trabalhou em colaboração com a PSP para garantir a exibição do filme, pedindo a Francisco e Luís Gigante, o outro projeccionista, que “só deixássemos entrar um espectador de cada vez e foi o que fizemos com mais ou menos empurrões de gente da Igreja [,] que tentava entrar de qualquer maneira [;] havia alguns mais espertos que ficaram calmamente na fila para comprar bilhetes e conseguiram entrar”. Dentro da sala, com lotação esgotada, esses espectadores começaram a gritar, segundo uma notícia do Diário de Lisboa, “a virgem é pura”, “o realizador é ateu”, “estão a insultar a nossa mãe”. Três espectadores tomaram conta do palco; Elisabete França escrevia num artigo do Expresso de então que a cena – “um deles, de rojo, evocava o transe místico, rangendo os dentes e rezando ave-marias”, outro ameaçando queimar a fita – sugeria um auto-de-fé. A projecção acabou por se atrasar meia hora. Cá fora, a jornalista testemunhou um indivíduo dizendo ao presidente, “pertenço à segurança do CDS, se precisar de alguma coisa é só dizer”. Outros manifestantes exclamavam “viva Nossa Senhora de Fátima, padroeira de Portugal”, e cantavam o hino daquela terra. A PSP procedeu a três detenções, e um manifestante recebeu pontapés de um polícia no estômago, necessitando de transporte ambulatório. Conta o DN que o autarca tentou aproximar-se da carrinha dos detidos, sendo agarrado por um polícia que lhe disse “isto não pertence ao seu pelouro”.

Krus Abecasis dizia à porta da Cinemateca que aquela “casa funciona com o dinheiro do Estado e não tem o direito de ofender o povo português”, e “meia dúzia de intelectualóides, que não valem dois tostões, não podem assim ofender todo um povo”. No desenlace, a Cinemateca respondia, em comunicado, “uma Cinemateca – qualquer Cinemateca – deve mostrar tudo, e qualquer exclusão, baseada em gostos pessoais ou colectivos, movimentos ou sentimentos individuais ou de grupos, é um acto de censura”. O Patriarcado considerou o filme “objectivamente uma obra blasfema, como lhe chamou João Paulo II, e ofensiva do respeito que todos, inclusive os descrentes, devem a pontos essenciais da fé cristã”.

Este ano revela-se outro ano perigoso para a liberdade de expressão. A 9 de Janeiro, e outra vez a 7 de Junho, os tribunais na Arábia Saudita condenaram o blogger Raif Badawi a mil chicotadas e dez anos de prisão, por apostasia e ofensa à religião. Quando a ministra dos negócios estrangeiros sueca Margot Wallström, que subiu ao poder em Outubro advogando uma diplomacia feminista, pôs os pontos nos is em Março, equiparando a condenação a “métodos medievais”, e criticando também o tratamento degradante a que metade da população (as mulheres) está sujeita, os dois países entraram numa rixa diplomática que envolveu a suspensão dos vistos e a retirada dos embaixadores. No seu país a ministra foi criticada, uma vez que a exportação de armas para a Arábia Saudita representa para a Suécia cerca de mil milhões de euros. No Ocidente, nenhum congénere ecoou o sentimento de Wallström, afinal a Arábia Saudita é aliada dos EUA.

Em Portugal, em Fevereiro, na ressaca do atentado à liberdade de expressão na redacção do Charlie Hebdo, em Paris, o Observatório para a Liberdade Religiosa da Universidade Lusófona organizou em Lisboa o debate “Religião, Humor e Ofensa”. Bacelar Gouveia, constitucionalista, afirmava então que, se um jornal “fizesse por exemplo uma caricatura erótica de Jesus ou de Nossa Senhora”, justificar-se-ia uma acção em tribunal – apesar de o artigo 185 do Código Penal português considerar que “[a] ofensa [à memória de pessoa falecida] não é punível quando tiverem decorrido mais de 50 anos sobre o falecimento”. É que os artigos 251 e 252 do mesmo código penalizam “quem profanar lugar ou objecto de culto ou de veneração religiosa, por forma adequada a perturbar a paz pública” ou “[p]ublicamente vilipendiar acto de culto de religião ou dele escarnecer”, e, de acordo com o International Press Institute, que num relatório publicado no início deste mês condenava o abuso das leis de difamação portuguesas, estes artigos podem “concebivelmente ser usados para restringir o debate em matérias de interesse público”.

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