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Sun Ra: jazz, extraterrestres e Afrofuturismo

Texto: ISILDA SANCHES

De 4 a 11 de julho o ciclo “Are you for real?” propõe uma viagem afrofuturista do blaxploitation às utopias queer visuais e sonoras. O programa abre com o filme “Space is the Place” (1974), que hoje nos leva a evocar a figura de Sun Ra.

Dizia que vinha Saturno, obrigava os músicos a um regime de trabalho escravizante e mudou o curso do jazz. Sun Ra é uma figura mítica que muitos tomaram por palhaço, e que, 100 anos depois do seu nascimento, continua a desafiar toda lógica conformista, musical e não só. Poderemos perceber isso no ciclo que o Queer Lisboa propõe a partir de dia 4 em colaboração com a Africa.cont/CML. “Are You For Real” sobre blaxploitation, Afrofuturismo e utopias queer visuais e sonoras, apresenta dois filmes e uma instalação sobre o músico, poeta, filósofo e auto confesso alienígena: Space Is Tha Place (1974) de John Coney, Sun Ra: Brother From Another Planet (2005) realizado por Don Letts e a instalação A Joyfull Noise de Robert Mugge. Do ciclo faz ainda parte o documentário de 1996, Last Angel Of History, em que Sun Ra é apresentado como um dos pilares do Afrofuturismo. Todos mostram um personagem fascinante como nenhum outro na história da música – nem Stockhausen, que também dizia ser extraterrestre (de Sirius) mas foi sempre mais discreto do que Sun Ra, nem Lee Perry que, nunca tendo sido discreto, também nunca foi tão teatral ou consistente, quer no discurso quer no método.

Seja qual for a perspetiva, Sun Ra será sempre um excêntrico, o que necessariamente começa nas imagens que existem dele em ofuscantes roupas faraónicas. São muito poucas as fotos enquanto Herman Poole Blount, o nome dado pelos pais, renegado mais tarde, tal como toda a sua história “terrestre”. Sun Ra, que nasceu em 1914, apagou (ou tentou apagar) todo o rasto do seu passado para começar do zero, nos anos 50, uma nova narrativa cósmica em que ele próprio e a sua música eram emissários da Verdade. Aprendeu sozinho a ler pautas e tocar piano, armazenou conhecimento esotérico desde criança, através de leituras sobre maçonaria, egiptologia, rosacrucianismo e todo o oculto que lhe foi parar às mãos e, à medida que foi crescendo, desenvolveu um distanciamento da normalidade que o aproximou do génio mais revolucionário. Claro que ninguém esperava que um dia mudasse toda a sua vida alegando ter sido abduzido por extraterrestres (foi uma das primeiras pessoas de que há registo a fazê-lo!) mas ele acreditava de facto na sua missão de espalhar conhecimento e salvar a humanidade (ou a raça negra) e ser incompreendido não foi obstáculo.

Sun Ra foi um músico exigente que atingiu a transcendência com método de trabalho rigoroso, ainda que indecifrável para a maioria dos humanos, alguns dos seus músicos incluídos. Viveu em comunidade com a sua Arkestra (que chegou a ter mais de 30 elementos) para controlar gastos e garantir dedicação total à música, foi pioneiro nas edições independentes com a El Saturn, vestiu a sua orquestra/Arkestra com roupas estranhas e arranjou bailarinas para completar o seu teatro em palco com espetáculos que podiam durar horas.

Space Is Tha Place, o filme de John Coney, conta a história “oficial”, tal como escrita por Sun Ra, que assina o argumento. Realizado em 1974, em plena era blaxploitation, começou a ser feito numa fase em que Sun Ra dava palestras em Berkely sobre os negros e o cosmos. A convivência com estudantes universitários e intelectuais da contra cultura criou as condições para fazer o filme. Nele Sun Ra, desaparecido desde 1969, mas a viver noutro planeta com a sua Arkestra, regressa a Chicago em 1943, ao clube noturno onde tinha tocado como Sonny R e provoca um motim que dá origem a um jogo de cartas em que se decide o futuro da raça negra. Nos primeiros minutos podemos ver Sun Ra antes de o ser, enquanto virtuoso do piano, brilhante no swing mas ainda mais na forma como o desconstrói para provocar o caos. O filme é absolutamente delirante, sci fi do mais lo-fi e absurdo, mas uma fiel representação da sua cosmogonia e um verdadeiro objeto de culto.

A Joyfull Noise, uma instalação que também é um filme, oferece igualmente um plano muito aproximado do universo de Sun Ra, entrevista o próprio rodeado de artefactos egípcios, mostra imagens de ensaios e concertos e também de Space is Tha Place (afinal, é o filme definitivo sobre Sun Ra). Já o documentário de Don Letts, Brother From Another Planet, o mais recente do ciclo (2005), usa imagens de ambos filmes para contar a história de Sun Ra mas recorre ao ponto de vista de críticos e músicos, dentro e fora do círculo de Sun Ra, entre eles Archie Shepp e Thruston Moore. A multiplicidade de opiniões permite unir mais peças no enigmático puzzle com algumas histórias interessantes que atestam, por exemplo, sobre o seu regime de trabalho (conta-se a história de ele não dormir, mas fazer cat naps enquanto a Arkestra ensaiava para depois voltar à musica como se nada tivesse acontecido, dando sinais de ter estando atento, mesmo enquanto dormitava).

Sun Ra aparece ainda no documentário Last Angel of History, realizado por John Akomfrah em 1996. Ele é identificado como um dos três pilares musicas do Afrofuturismo, ao lado de Lee Perry e George Clinton, mas com o peso de ter sido o primeiro a estabelecer a ligação entre os negros e o espaço. O documentário privilegia o techno e o jungle e tem depoimentos do escritor/crítico Kodwo Eshun, de pioneiros de Detroit como Derrick May e Juan Atkins, e ainda de Goldie, na altura a estrela do jungle. Apesar de Sun Ra ser do universo do jazz, não é de todo estranho que se fale de Sun Ra num contexto destes, ele foi pioneiro no uso de sintetizadores, criou toda uma mitologia sci fi que se relaciona a com geração dos computadores, mas a sua música livre, polirrítmica e futurista, que aceitava o feio para procurar o sublime, propagou-se a músicos e produtores de diferentes géneros e gerações. MC5 tocaram com ele, Sonic Youth nunca esconderam a sua admiração, George Clinton e todo o imaginário P Funk são seus descendentes diretos, a sua sombra paira também sobre o hip hop e electro, via Afrika Bambaataa, espalha-se pelo techno de Detroit, do passado e do presente, o jungle ou as novas eletrónicas de gente como Flying Lotus. Sun Ra foi um músico de dimensão galáctica. Faleceu em 1993 e deixou uma obra do outro mundo – só discos, são mais de 100!

Space is The Place passa dia 4 às 21.30 e repete dia 6 às 15.30
Sun Ra: Brother From Another Planet e Last Angel of History passam em sessão conjunta dia 8 às 19.00
As sessões de cinema decorrem na Cinemateca Portuguesa

A instalação A Joyful Noise está patente entre os dias 4 e 31 das 13.30 às 22.00 na sala 6X2 da Cinemateca Portuguesa.

Pode consultar aqui a programação completa do ciclo.

1 Comment on Sun Ra: jazz, extraterrestres e Afrofuturismo

  1. Artigo de 5 estrelas! E o depoimento de Kodwo Eshun é ouro: ‘how much more does it take to be alien than that (sobre a matriz e a ‘diáspora’ forçada da cultura negra, desde Colombo)? Muito bom!
    Ricardo Saló

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