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15 anos numa pequena ilha

Texto: NUNO GALOPIM

Foi o naufrágio de um navio carregado de escravos em 1760, e o resgate dos sete sobreviventes 15 anos depois, que deu nome e uma história à pequena ilha de Tromelin, um pedaço de coral e areia no meio do oceano Índico. Uma nova BD evoca o passado e acompanha o trabalho de arqueologia que o revelou.

Tromelin é uma pequena ilha que guarda na sua memória uma grande história. Não chega aos dois quilómetros de comprimento e soma uns 700 metros na zona de maior largura, correspondendo à zona emersa de um pequeno recife que se destaca numa região onde os fundos marinhos mergulham a grandes profundidades logo depois. Em pleno oceano Índico, a 430 quilómetros a nordeste de Madagáscar, fora localizada em 1722, notando-se logo pela sua morfologia (sem baías ou ancoradouros naturais) uma extrema dificuldade em ali chegar de barco. Foi por acidente que acabaria por ser habitada pela primeira vez quando, em 1760, um navio da Companhia das Índias Orientais comandado por um oficial que sonhava com grandes lucros com os 160 escravos que transportava ali naufragou. O barco embateu no recife, rasgou-se em dois e ceifou a vida a muitos dos que, encarcerados no porão, não conseguiram sequer sair dos destroços. Muitos chegaram contudo a terra. Obrigados a conviver pela sobrevivência, não deixaram de projetar mesmo ali as mesmas regras do poder. A estratégia de sobrevivência levou os marinheiros a construir com os destroços um barco de menores dimensões. Todos ajudaram. Mas só os brancos partiram, prometendo um socorro que só chegaria 15 anos depois, após quatro tentativas e muito mais insistência por alguns dos náufragos que, antes de abandonarem a ilha, tinham prometido liberdade aos que ali ficaram à espera de ser resgatados. Eram apenas sete mulheres e um bebé os sobreviventes que ali ainda viviam quando finalmente foram recolhidos por um barco. Tinham mantido o fogo aceso. Haviam construído abrigos em pedra (opção contrária à das suas crenças e hábitos), para resistir aos ciclones e às grandes tempestades que por vezes chegavam cobrir a ilha de vagas ameaçadoras. Mas graças à tenacidade de um novo capitão da marinha francesa, com a missão de socorro em vista, dali partiram para regressar a outra terra (mais) firme. O capitão chamava-se Chevalier de Tromelin.

A história dos náugrafos de Tromelin não é inédita e já foi contada em outras ocasiões. Mas nos últimos anos uma série de missões arqueológicas na pequena ilha – que hoje acolhe uma central meteorológica e uma pista de aviação – permitiu aprender muito mais sobre o quotidiano daqueles que ali conheceram durante 15 anos uma certa liberdade, embora confinada àquela mão-cheia de metros quadrados de areia e coral com mar em volta.

A bordo de uma destas missões partiu o autor de BD Sylvain Savoia. Natural de Riems (França), onde nasceu em 1969, fez a sua formação na Bélgica e começou a publicar regularmente a partir de 1993, assinando, entre outros títulos, os volumes da série Marzi. Com um traço bem diferente do que possam conhecer desses álbuns, apresenta agora em Les Esclaves Oubliés de Tromelin, uma narrativa em dois tempos, arrumando em paralelo uma evocação histórica dos acontecimentos e uma reportagem do dia a dia da equipa que acompanhou no terreno.

Com um desenho mais clássico recorda os acontecimentos de 1760 a 1775, escolhendo uma mulher como protagonista cujas características de personalidade permitem ao autor afirmar um ponto de vista individual (e crítico) sobre os acontecimentos e o modo como depois se desenrolaram os dias de convivência entre os carcereiros e os que até ali vinham agrilhoados.

Num registo de escrita e desenho bem distinto – e mais pessoal –, os relatos do presente acompanham as figuras e os trabalhos em Tromelin, mas não deixam de viver frequentes momentos de fuga e solidão do autor nos quais, entre as ondas em seu redor e aquele montículo de areia e coral (com uma altitude máxima de sete metros face ao nível do mar), se lança em reflexões várias sobre os factos, as suas consequências, mas também a solidão, a condição humana e algumas grandes questões que tantas vezes se colocam mesmo sem um interlocutor com quem as transformar em diálogo. Savoia, de resto, encara aqui o leitor como aquele que poderá tomar esse papel ao ler o texto e ver as imagens.

Este volume insere-se numa tendência cada vez mais sólida e interessante no corpo da atual BD franco-belga, reforçando formas renovadas de expressar a realidade e apresentar reportagens. Ao estabelecer uma história em dois tempos, abrindo espaço a alguma liberdade ficcional quando evoca o passado e juntando uma certa verve poética e filosófica quando foca o presente, Savoia acaba por promover uma certa diluição de fronteiras entre o documentarismo e a ficção. Afinal não estamos muito longe daquilo que temos visto em algum do mais interessante cinema do nosso tempo.

“Les Esclaves Oubliés de Tromelin”, de Savoia, foi publicado em álbum de capa dura pela Dupuis.

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