Ales Kot is hot
Texto: LUÍS FILIPE RODRIGUES
Ales Kot é hoje uma das vozes mais singulares e ambiciosas da banda desenhada americana mainstream. Isto nem se discute. O escritor checo, radicado em Los Angeles, tem apenas 28 anos de vida e três de carreira, mas isso nem sempre é aparente na sua prosa, intertextual e densa quando o texto o pede, mas com a insolência de um miúdo que ainda acredita no que faz e na possibilidade de mudança. A mudança é de resto um dos temas recorrentes na sua obra, e isso continua a ser evidente em dois comics que vão marcar os últimos dias de julho: o primeiro número de Wolf, editado na quarta-feira pela Image, e o derradeiro volume de Zero, com edição prevista para 29 de Julho, que reúne os números 15 a 18 da série mensal da Image.
O início de uma série e o fim de outra chegam numa altura em que Ales Kot está a ser mais falado do que nunca. Só na quarta-feira, por exemplo, o seu corpo de trabalho foi discutido em profundidade no A.V. Club, foi entrevistado pela segunda vez em menos de um ano pelo Vulture, o site de cultura da revista New York, e o jornal de referência britânico The Guardian fez um perfil sobre ele. E a Paste ainda falou com ele sobre as canções que influenciaram Wolf.
Há três grandes razões para este pico de mediatismo. A primeira prende-se com o talento cristalizado ao longo destes três anos, tanto nos livros de autor lançados através da Image Comics, a maior editora de BD independente americana, como em trabalhos pontuais para as principais editoras de super-heróis: as líderes de mercado Marvel e DC e a Valiant, que renasceu das cinzas por volta da mesma altura que ele publicou o primeiro livro, Wild Children. A segunda explicação centra-se na sua postura engajada e indómita, que se traduz numa presença online disruptiva e cativante que atrai tantos admiradores como detractores. Por fim, a terceira razão, e a mais premente, é a edição de Wolf, que pode até não ser (não é) a melhor coisa que já escreveu mas, a julgar pelo primeiro número, será a mais acessível e abrangente.
Cordeiro em pele de lobo
As primeiras linhas dizem muito sobre um livro. Wolf abre com uma caixa de narração onde se lê “How do you feel about myths?”, e um balão de fala onde o protagonista, Antoine Wolfe, canta Hellhound On My Trail, de Robert Johnson, enquanto o seu corpo é consumido pelas chamas – nada tema estimado leitor, ele é imortal. Passadas duas páginas, surge a resposta à pergunta inicial: “I love myths”. Essa paixão é evidente ao longo das 57 páginas que se seguem.
A nova série de Ales Kot é uma narrativa sobrenatural algures entre Hellblazer, o clássico da Vertigo publicado entre 1988 e 2013, e a tradição noir de Los Angeles. No primeiro número, há um protagonista com pouco bom senso e menos amor à vida, polícias pouco competentes, antagonistas racistas e fascinados pelo oculto, senhorios que são autênticos vampiros e um monstro lovecraftiano que até é um tipo porreiro. E há sempre qualquer detalhe que distingue estas personagens dos arquétipos em que são inspiradas, algo que as eleva e torna únicas.
Mas não é a maneira como diferentes géneros literários são enlaçados que torna tudo tão especial, até porque não é a primeira vez que uma edição da Image introduz ecos de Lovecrat numa narrativa noir (recorde-se Fatale, de Ed Brubaker e Sean Phillips, concluído há um ano). O mais interessante são as referências e ligações com textos anteriores e outros autores. Veja-se a citação de Robert Johnson que abre o livro. Por um lado, remete para a lenda de Johnson, o bluesman que vendeu a alma ao diabo numa encruzilhada do Mississippi, o tipo de mito sobrenatural que podia ter saído das páginas de Wolf. Por outro, estabelece uma ponte com a primeira obra do escritor, Wild Children, que a dada altura cita uma passagem de Phonograph Blues, um ensaio do crítico Mark Fisher que problematiza a obra de Johnson. Está tudo ligado.
Ou fala-se do próprio Antoine Wolfe, um detective paranormal de classe operária que encara o perigo de frente e é literalmente assombrado por fantasmas. Esta breve descrição assenta como uma luva em John Constantine, o mágico criado por Alan Moore nas páginas de Swamp Thing que viria a protagonizar o referido Hellblazer. É claro que há diferenças óbvias, como o facto de Wolfe ser negro, mas as semelhanças com Constantine são claras e assumidas pelo próprio autor. Nada acontece por acaso.
O outro grande trunfo de Wolf, se não mesmo o maior, é a componente visual. O ilustrador Matt Taylor já tinha colaborado com Kot em Zero, mas agora subiu a parada. O traço é simples mas detalhado, as personagens são inconfundíveis, com feições claras e expressivas mas sem serem demasiado realistas. Há uma constante ilusão de movimento. No entanto, o verdadeiro triunfo é a composição e o ritmo das páginas, a maneira como Taylor abre e fecha os planos de acordo com a acção. O colorista Lee Loughridge também não desilude, apostando sobretudo em tons terrosos e pouco pronunciados para realçar a atmosfera árida e indolente do livro.
Estruturalmente, o primeiro número de Wolf é um objecto igualmente curioso. Tem 60 páginas de história, três vezes mais do que a maior parte dos comics publicados todos os meses nos Estados Unidos, todavia não estamos perante três números enfiados numa só revista. A narrativa está demasiado descomprimida, e são introduzidas várias ideias e enredos, mas nada é resolvido ou explicado. Nesse sentido, o ritmo e a lógica interna da história estão mais próximos do episódio piloto de muitas séries de televisão de prestígio do que do primeiro número de uma série de banda desenhada (isto para já não falar dos primeiros três números).
E a experimentação com a forma não parece ficar-se por aqui. Em mais do que uma ocasião, a roupa do protagonista muda de uma página para a outra sem explicação aparente. Por agora. A dada altura, por exemplo, Wolfe está a falar com o milionário que mandou que lhe ateassem fogo nas primeiras páginas (o racismo do homem branco que pega fogo a um negro não passa em claro), e tem apenas uma T-shirt vestida, mas na página seguinte levanta-se e aparece com um casacão, sem qualquer explicação. Depois, deixa-se dormir com uma T-shirt no corpo e acorda em tronco nu. Isto pode não passar de um erro de continuidade, mas é pouco provável. É possível que histórias diferentes se estejam a desenrolar em simultâneo, ou que o tempo narrativo avance e retroceda constantemente, mas isso nunca é explícito.
Por enquanto nada disto é um problema, antes pelo contrário. Estas lacunas aumentam a incerteza em relação ao que estamos a ler e causam algum desconforto, como deve acontecer numa boa história de terror. Contudo, mais cedo ou mais tarde, vai ser preciso responder a estas questões. Atendendo ao corpo de trabalho anterior, as respostas serão satisfatórias.
Uma história de violência
Zero foi o comic que cimentou Ales Kot como um dos escritores de banda desenhada mais interessantes da sua geração. Desenhado por um ilustrador diferente em cada número, começou por ser uma desconstrução honesta da ideia de James Bond, e consequentemente da masculinidade ocidental, mas as últimas páginas do primeiro volume, An Emergency, revelaram que não era só mais uma história de espiões, ou sequer uma história de espiões com um ângulo pós-moderno. Os dois volumes seguintes deixaram isso cada vez mais claro, e o último, que está prestes a sair, vai ainda mais longe, introduzindo o escritor William S. Burroughs, cogumelos psicotrópicos e realidades paralelas num texto cada vez mais abstracto.
Esta foi, desde o primeiro instante, uma história sobre a violência, centrando-se primeiro nas suas diversas manifestações e mais tarde nas suas consequências. Os primeiros dois volumes tentaram equilibrar esses dois lados, partindo sempre do princípio que a violência gera mais violência. Mas o terceiro, Tenderness of Wolves, centrou-se quase exclusivamente nas suas consequências, colhendo as sementes narrativas plantadas ao longo dos números anteriores. É um livro eminentemente visual, com poucas palavras e muita acção. O quarto volume, Who By Fire, é precisamente o oposto. A acção trava bruscamente, a violência é conceptualizada e reduzida a um objecto de debate. E o foco centra-se, por fim, nas suas causas.
Ales Kot sugere que a violência é gerada pelos sentimentos de vergonha, e consequentemente insegurança, que se colam aos homens e sociedades como parasitas – ela chama-lhe “o espírito feio”, uma ideia que roubou a Burroughs, uma das personagens principais de Who By Fire. A ideia central do livro é que só depois de nos libertarmos da vergonha, e do nosso ego, podemos libertar-nos a violência. Página após página, o autor parece ser o principal destinatário do livro, exorcizando os seus fantasmas no texto, tentando libertar-se da sua própria violência. Pelo meio cita outros autores, incluindo Patti Smith, e resolve todos os pontos narrativos em aberto. E depois chega-se ao final, altamente abstracto mas encantador.
O texto de Ales Kot é particularmente denso e hermenêutico, sem nunca ser onanístico, porém as principais responsáveis por este final funcionar assim tão bem são Jordie Bellaire, a melhor e mais prolífica colorista da BD americana, e Tula Lotay, que desenha o último número e o envolve numa atmosfera lynchiana e onírica. Esta ilustradora conta-se, de resto, entre os melhores artistas que agraciaram Zero, a par de Ian Bertram, que confere a rugosidade e textura necessárias às primeiras páginas deste tomo. Uma das obras obrigatórias da banda desenhada americana deste século.
Wolf #1
4 / 5
De Ales Kot, Matt Taylor, Lee Loughridge, Clayton Cowles, Tom Muller
Image Comics
Zero v4
5 / 5
De Ales Kot, Jordie Bellaire, Ian Bertram, Stathis Tsemberlidis, Robert Sammelin, Tula Lotay, Clayton Cowles, Tom Muller
Image Comics
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