Vanessa Lapa: “Há muito ainda a descobrir sobre o Holocausto”
Texto: NUNO GALOPIM
Sem entrevistas nem mesmo imagens recentes, O Homem Decente é um retrato de Heinrich Himmler, o reichsfüerher das SS, integralmente feito de memórias relacionadas com ele mesmo. A partir do seu arquivo pessoal, recordando textos de cartas e anotações, olhando para fotografias de família e também filmes oficiais e privados da época, a realizadora Vanessa Lapa constrói assim um retrato de uma figura que teve peso determinante na hierarquia do regime nazi. Ela mesma fala aqui sobre o modo como construiu o filme (que acaba de ser editado em DVD entre nós pela Midas Filmes) e o que descobriu sobre a figura à qual dedicou parte importante da sua atenção nos últimos anos.
Porque escolheu a figura de Himmler?
Há uma razão e não é uma resposta entusiasmante. Não fui eu quem o escolheu, foi ele quem me escolheu a mim… A coleção [ou seja, o seu arquivo pessoal] esteve durante 40 anos sob a cama de um israelita, em Tel Aviv. E em 2006 o seu filho convenceu-o a passá-la a alguém que pudesse fazer algo com ela. Começou a falar com um professor na Universidade de Tel Aviv que me conhecia e que me ligou. Disse que, como realizadora de cinema, poderia estar interessada numa enorme coleção de escrita particular na Universidade, perguntando se eu queria ir lá ver o que era… E foi assim que cheguei a Himmler.
O que havia nesse arquivo? Os filmes particulares que usa em O Homem Decente estavam ali?
Não havia filmes. Apenas documentos escritos, cartas, fotografias. As imagens em movimento que uso no filme vieram de uma pesquisa que fiz depois. Comecei por estudar o texto. Muito do que estava escrito vinha num alemão antigo, que tive de traduzir para alemão contemporâneo e depois para hebraico e inglês. Escrevemos um argumento e só então começámos a procurar as imagens.
Onde procurou então as imagens?
Tudo é historicamente correto. Começámos por procurar nos lugares onde Himmler esteve. Bibliotecas, escolas… Foi assim que começámos a pesquisa visual. Sobretudo em arquivos privados e filmes de família, e alguns deles nunca tinham sido sequer revelados. Digitalizamos as imagens. As vezes tínhamos sorte e havia coisas que podíamos usar.
Perante tanta informação como decidiu onde devia focar a história? Os elementos sobre a vida pessoal e familiar tinham ali material suficiente para suportar um ponto de vista?
Sim, era a característica central de uma coleção que era inédita. O filme é baseado nela. Muito do que uso vem da sua escrita pessoal. Houve a preocupação de retratar datas históricas, as pessoas importantes que conheceu, as menções a Hitler… Esse foi o primeiro round. O segundo foi a escrita que revela coisas sobre ele e as suas relações. E depois foi encadear tudo isso de forma a haver um desenvolvimento dramático na história. Há boas histórias… Foi assim que fizemos a escolhas. O trabalho foi feito na companhia de um historiador e de um psicólogo. Para assegurar que estávamos a compreender os significados da correspondência.
Há uma altura da narrativa, anterior mesmo a uma carreira política, na qual se sugere que aquela ideologia já estava enraizada em si. Nota-se também em alguns comentários do jovem Himmler uma atitude crítica perante a modernidade.
Isso é algo que o filme revela. E responde aquela questão sobre se Hitler teve de fazer uma lavagem ao cérebro a muitas pessoas ou, se havia já pessoas que, com um background cultural, o encontraram antes a ele. Himmler encontrou Hitler. Porque encaixava na sua ideologia. Ou seja, ele não moldou a sua ideologia segundo Hitler. Ele era apenas a concretização dos seus sonhos.
A sequência da visita da família Himmler a Dachau sugere que podia haver quem não conhecesse a extensão real do que acontecia nos campos de concentração…
Essas imagens chegaram já no final da montagem do filme. E abri a montagem para as inserir. São filmes feitos pelo padeiro de Dachau. Recebemo-las do filho dele. Tínhamos o texto da Gudrun [a filha mais velha de Himmler] e a grande questão era saber se ela mentia ou não sobre se aquele tinha sido mesmo um dia lindo e o que é que ela teria visto. Se tinha visto prisioneiros a morrer de fome e a ser espancados ou se tinha visto um piquenique… As imagens mostram que a Gudrun não estava a mentir. O que ela viu foi aquele jardim em Dachau. Era o que as famílias faziam aos domingos. Piqueniques nos jardins em Dachau. E isso revela que Himmler não mostrava o que se passava de facto nos campos de concentração. A família ia lá, mas o que via eram pessoas a fazer um piquenique e a divertir-se.
O filme faz o retrato não penas do homem político, mas também o privado. Até que ponto eram iguais ou diferentes as suas atitudes num e outro plano?
Isto é mais uma questão de interpretação minha. Mas parecem-me ser o mesmo homem. Não é uma personagem à Dr Jeckyll e Mr Hyde… Eu acredito que ele era um homem perverso, retorcido, violento. Quando escreve à mulher, antes de casarem, diz que a ama, mas que há algo que ele ama mais – a nação – isso não é romântico. Eu não gostaria de receber uma carta de amor daquelas antes de casar. Não vejo ali um marido apaixonado. E há depois o o facto de ter uma amante… Ele acreditava que uma família alemã devia ter quatro filhos. O facto da mulher não poder ter mais filhos querer dar mais ao führer… Era legal ter filhos arianos fora do casamento. Era preciso haver crianças arianas para assegurar a continuação da raça alemã. Não creio que haja uma dupla personalidade. Nem para mim nem para o psiquiatra que trabalhou comigo. Estou certa que há psiquiatras que analisariam estas coisas de uma outra maneira. Não é uma ciência exata.
O site oficial do filme tem uma zona que menciona livros. Foi material usado na etapa de investigação?
Os livros que surgem no site são títulos que surgiram em paralelo com o filme. São livros escritos sobre esta mesma coleção. Um deles vai ser publicado em Portugal.
Mas leu outros livros para preparar este filme?
Foi um projeto de oito anos. Li centenas de livros. Li sobre História e aquele período… Muitas biografias, entre elas a de Hitler de Ian Kershaw, livros sobre a Gestapo. E, claro, muitos sobre Himmler.
No assinalar dos 70 anos sobre o fim da guerra há ainda novas histórias por contar?
Há muito ainda a descobrir sobre o Holocausto… Ainda haverá outra carta, outro postal… Há coisas que andam por aí. Muitas coisas haverá em coleções de particulares, em feiras de velharias… E isto não é uma pesquisa subjetiva. Houve filmes que descobrimos que nunca tinham sido revelados. Acredito há muito anda ainda por aí.
Pensa regressar a este tema num filme futuro?
Aprendi que nunca se deve dizer não. Fui jornalista durante dez anos. Depois fiz um primeiro documentário… O Holocausto não era um tema pelo qual tivesse um interesse especial. Nasci judia. Os meus avós são sobreviventes. Muita da minha família foi assassinada em Auschwitz. Tenho um background no Holocausto. Sou de terceira geração. Não pensava em fazer nada sobre este assunto como realizadora de cinema. Mas apareceu a coleção. E… Ou seja, não sei se vou voltar a este tema. Mas na verdade não sei… Acredito que, muito provavelmente, vou procurar negativos que não foram revelados e procurar que histórias possa contar. E daí talvez venha um próximo filme. Não sei se estará ligado ao Holocausto.
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