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Etecetera e tal

Texto: JOÃO SANTANA DA SILVA

Imaginem um nazi da gramática (ou, como os anglófonos dizem, em expressão muito mais feliz e ritmada, um grammar nazi). Agora imaginem-no sem as suásticas e, bem ao contrário do que é habitual na classe profissional, a encontrar nos erros gramaticais a felicidade e não a fonte da sua ira. Ficaram com uma ideia do que é o novo livro de Abel Barros Baptista.

Confesso que tive um certo prazer em atirar-me de cabeça para um livro que não diz, na contracapa, ao que vem. Li dois parágrafos seguidos, ri-me. Desfolhei umas dezenas de páginas para a frente, dei uma espreitadela a duas frases e ri-me um pouco mais. Não sabia o que era, mas, sem raciocinar muito, pensei: “Tenho de ler isto”. Só mais tarde, sentado e sossegadinho em casa e com o livro nas mãos, me dediquei a perceber a natureza do mesmo.

Inclassificável. Assim o declara, logo na contracapa, o livro de Abel Barros Baptista. E pergunta: “Ficção? Ensaio? Crónica?”. Não se sabe, aparentemente. Mas, lendo a nota prévia do opúsculo, a coisa é mais fácil do que querem fazer parecer. É um conjunto de crónicas do autor publicadas na revista Ler, ao longo (e aqui também faço uso dos meus poderes de dedução ao ver as notícias e os assuntos mais corriqueiros referidos nos textos) dos últimos, poucos, anos desde 2008. E as crónicas, verdade seja dita, assim encadeadas tornam-se algo diferente. Praticamente um diário, um Memorial de Aires, a dar ares de obra de ficção e dando lugar a um livro excelente no panorama muitas vezes néscio da literatura de humor em Portugal.

Por falar em Machado de Assis, Abel Barros Baptista é professor de literatura na Universidade Nova de Lisboa há vários anos e tem desenvolvido bastante trabalho em redor da literatura portuguesa e brasileira e, em especial, sobre Machado e Camilo Castelo Branco, também este capaz de um humor poucas vezes reconhecido. Pode-se dizer que, em matéria de humor, e seguindo o exemplo inglês de write what you know, Barros Baptista sabe do que fala.

“Há tempos, num daqueles debates aparatosos da televisão em torno do futuro, talvez da juventude, ouvi um dos participantes declarar que faltava, sim, e faltava muito – irreverência. Porém advertindo: ‘Mas atenção! Irreverência não quer dizer falta de respeito!’ Como nenhum dos muitos presentes lhe objectasse que falta de respeito é justamente o que irreverência quer dizer, o cidadão deve ter ido dali convencido de que podia reclamar dos outros e até praticar ele próprio a irreverência respeitosa.” Um dos primeiros artigos do livro, este sobre a “irreverência respeitosa” ou “respeito irreverente”, marca logo passo na viagem que nos leva pelo universo dos tropeções na língua portuguesa. E é esse o material e a inspiração de Abel Barros Baptista para falar de tudo o que lhe dá na real gana, desde a televisão (muita televisão), ao ministro Nuno Crato, à universidade e às notícias. Vendo bem, todos os temas vão dar à televisão, janela do autor para o mundo.

E não sejamos parcos em palavras: Barros Baptista molda temas quase despercebidos e transforma-os em grandes questões intemporais. Como, por exemplo, as artes mágicas e sedutoras do insulto. “O que se requer ao insulto para ser arte é elevação, e a única via que eleva é o apuramento da linguagem. Dizer de certo sujeito que é ‘alcançadíssimo de inteligência’ ou que o caracteriza ‘extrema parcimónia das faculdades mentais’ é melhor do que chamar-lhe idiota: não apenas tem graça como suplanta o sentimento de caridade pelos menos afortunados, facilitando a apreciação da frase em si mesma, sem consideração do efeito que venha a produzir no visado.” Se isto não é brilhante e hilariante (atenção que, embora seja brilhante, pode-se rir sem gravata e de camisa para fora das calças), não sei que vos diga.

Temos alguns cronistas que reúnem essas duas qualidades. Humor e inteligência. O que, embora seja Portugal, não quer dizer nada. Tal como na China nem todos sabem artes marciais e no Brasil nem todos sabem jogar futebol, num país nonsense como o nosso os humoristas vêm apenas por vagas. Da atual, conseguem-se desencantar alguns nomes que surgem automaticamente: Rogério Casanova (que também escreveu na Ler), Ricardo Araújo Pereira, João Quadros e poucos mais. Talvez Vasco Pulido Valente, embora involuntariamente. No passado recente, tínhamos outros com alguns dotes. Na década de 1970, desde Dinis Machado a Assis Pacheco, o talento reinava. Mas, neste terreno entre passado e presente, existe um que estragou tudo. Um pouco como, após ver The Wire, nenhuma outra série volta a ser suficientemente boa. E esse tipo que deu cabo disto foi Miguel Esteves Cardoso (MEC), o melhor cronista de sempre.

Dizer que Abel Barros Baptista é tão engraçado e memorável como MEC é, talvez, exagerar. Mas dizer que é exagero é, por sua vez, injusto, pelas razões acima descritas. Por outro lado, e tendo em conta que a literatura não é um concurso Miss Vestido de Chita nem uma maratona olímpica, não é possível ordenar autores segundo a qualidade ou resultado da sua escrita. O que se pode fazer é ver MEC como uma referência, e uma referência importante, para qualquer cronista que brinque com a linguagem, e mais especificamente com a língua portuguesa, tão avessa à comunicação escorreita e à falta de erros gramaticais. Apesar de partilharem a geração, talvez Barros Baptista tenha lido MEC e tomado essas crónicas como uma das referências. Ou talvez não e se esteja a marimbar para As Minhas Aventuras na República Portuguesa. O facto é o seguinte: desde os anos 90, eu não lia alguém que me fizesse rir tanto com a língua portuguesa.

Demonstra-o este encontro imaginário com Angela Merkel, no metropolitano, no qual a chanceler alemã franze o sobrolho à viagem de metro do autor. “Talvez eu quisesse mostrar dificuldades orçamentais ou espírito de poupança: que não viajava acima das minhas possibilidades. Ela é que não condescendeu. Perguntou-me meia a sorrir se eu tentava imitar um desses malucos que são contra o transporte individual e querem toda a gente a plantar grelos na cozinha.” Plantar grelos na cozinha vale um mundo de literatura.

Mas o melhor talvez seja o testemunho de ter assistido a um programa cultural na televisão. Sempre uma má ideia se se quer passar um bom bocado. Mas uma boa ideia se o objetivo é recolher sementes para crónicas. “Há dias surpreendi na televisão uma jornalista de prestígio, isto é, cultural, a interpelar assim o convidado: ‘Sabe que eu literalmente devorei o seu livro?’ E empunhava o livro, que podíamos ver afinal impoluto, sem escorrer mucos como nos filmes de animação, quando alguém vomita chave, passarito ou rolo de papel. ‘Nestes casos, a produção arranja um exemplar limpinho’, disseram-me, ‘para não dar mau aspecto…’ Pode ser, mas prefiro pensar que foi cincada.”

Até Miguel Sousa Tavares e Álvaro Cunhal, personagens improváveis, se tornam material excelente para humor. Sobre o primeiro, que, apesar da vontade de fazê-lo, não deixou de fumar por “militância cívica”, por causa da perseguição de que são alvo os fumadores, tem a dizer o seguinte: “Militância cívica, então. Não tínhamos exemplo de tal sacrifício em nome do bem comum desde que Cunhal renunciou à carreira literária.” Para quem leu os contos de Manuel Tiago, sabe do que fala o autor.

Talvez seja a primeira vez que digo ou escrevo isto, seja onde for. Mas, com agosto quase a findar e setembro aí à espreita, levar E Assim Sucessivamente para uma mesa de café, para debaixo de um sobreiro no Alentejo ou – se forem corajosos – para uma cadeira de praia enquanto se acotovelam com outros veraneantes, não é nada má ideia. Abel Barros Baptista em doses cavalares pode não servir de protetor solar, mas é das formas mais seguras de descontrair um pouco enquanto se lê um livro que deixa marca.

Por outro lado, seja qual for a estação, há que voltar a este volume de crónicas daqui a uns anos, tal como se volta, de vez em quando, a Miguel Esteves Cardoso, Artur Portela e Victor Cunha Rego. E, de facto, convém ter E Assim Sucessivamente à mão, porque, independentemente de se vir a confirmar a adoção do Acordo Ortográfico, “em matéria linguística, ninguém é digno de confiança”, diz Barros Baptista. Há-de servir de consultor e livro de estilo para os tempos vindos.

“E Assim Sucessivamente”, de Abel Barros Baptista, foi publicado pela Tinta-da-China.

7 Comments on Etecetera e tal

  1. E o nome do livro é?

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  2. Abel Barros Baptista é, e bem, contra o Acordo Ortográfico…

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  3. Onde se lê “Desfolhei umas dezenas de páginas para a frente,” deve ler-se “Folheei umas dezenas de páginas para a frente,”.

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  4. concordo com o the wire e não concordo com o “melhor cronista de sempre”:o melhor cronista de sempre é o alexandre o`neill.Mas concordo que vou comprar este livro,e é já.

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    • Confesso que nunca li as crónicas do O’Neill, João. O MEC talvez tenha sido o mais marcante para a minha geração. E deixa mesmo aquela “angústia pós-The Wire”.

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