Crónicas de uma amizade
Texto: NUNO GALOPIM
Esta sexta-feira, a assinalar os 80 anos de Arvo Pärt, a editora ECM apresentou uma antologia no formato de CD duplo. Com o título Musica Selecta o disco nasce de uma seleção feita pelo próprio Manfred Eicher (o “patrão” e alma da editora), seguindo um modelo semelhante ao que, ainda há poucos meses, marcara o 75º aniversário de Keith Jarrett. E não deixa de ser curioso o facto de que, quando Pärt viu a sua música editada em disco pela primeira vez no catálogo da ECM, Keith Jarrett ter sido um dos músicos envolvidos na gravação desse primeiro disco para, ao lado do violinista Gidon Kremer, nos dar uma das versões (para violino e piano) de Fratres, peça fulcral da etapa mais claramente influenciada pelo minimalismo na obra do compositor. Esse momento de encontro e revelação, naturalmente, é um dos episódios recuperados no alinhamento de Musica Selecta.
Foi há precisamente 31 anos que, pela primeira vez, a música de Arvo Pärt surgiu na ECM através do álbum Tabula Rasa. De resto, esse momento correspondeu mesmo ao lançamento de uma nova “série” dentro do catálogo da editora alemã, visando sobretudo a exploração de novos caminhos na música contemporânea ocidental (e que ali chamaria, logo nos anos seguintes, nomes como os de Steve Reich, Meredith Monk ou Gavin Gryars).
Manfred Eicher ia a guiar, numa autoestrada, quando escutou pela primeira vez uma música que não conhecia. Tomou um desvio e subiu a um monte para obter melhor receção no rádio e ficou a ouvir. Levaria um tempo a descobrir de quem se tratava. Mas a música tinha cativado a sua atenção “pela sua claridade luminosa, pela sua paixão tranquila” e pelo seu sentido de “intemporalidade” como ele mesmo recorda num texto incluído no booklet desta antologia. A sua vontade em conhecer e gravar aquele autor, a “vontade de apresentar aquela música” aos ouvintes, estabeleceu o primeiro instante de um relacionamento que vai já para além de três décadas de frutuosa colaboração, pelo caminho tendo Arvo Pärt registado o corpo central da sua discografia através da ECM.
A proximidade do silêncio, a “intensidade e duração” dos sons, a muito particular noção de “pulsação” e “vibração” desta música obrigou Manfred Eicher a viver experiências diferentes das que já conhecia no estúdio de gravação. E convenhamos que o compositor não teria encontrado melhor parceiro para dar viva voz a uma obra que, ali, floresceu e conquistou seguidores.
Musica Selecta propõe um apanhado selecionado (e depois inteligentemente sequenciado) entre os 14 álbuns que Pärt lançou através da ECM, juntando contribuições de solistas e grupos como os já referidos Keith Jarrett e Gidon Kremer, mas também o Hilliard Ensemble, a Orquestra de Câmara de Talin ou o pianista Alexander Malter (que interpreta o subime Für Alina. Manfred Eicher não faz deste disco um catálogo comemorativo da relação da sua editora com o compositor nascido na Estónia há 80 anos. Pelo contrário, entre excertos de discos como Arbos, Tabula Rasa, In Principio, Kanon Pokajanen, Litany, Adam’s Lament ou Alina, cria um tranquilo mas arrebatador percurso pessoal esteticamente coeso e de narrativa aberta à experiência de relacionamento do próprio ouvinte com esta música. Assinale-se aqui a presença do inédito Most Holy Mother of God (de 2003), em gravação efetuada em 2005 pelo Hilliard Ensemble. Em dois CD acompanhamos episódios da história de mais de trinta anos de um entendimento profissional e, também de uma amizade firme e tranquila. Como esta música também o é.
“Musica Selecta”, de Arvo Pärt, está disponível numa edição em CD duplo pela ECM / Distrijazz

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