Bowie 1969: odisseia no espaço
Texto: NUNO GALOPIM
Não é invulgar vermos Space Oddity (editado em 1969) apontado como sendo o primeiro álbum de David Bowie. Mas, na verdade, é o seu segundo . O primeiro, David Bowie, lançado dois anos antes, era um híbrido de genéticas vaudeville cruzadas com cultura pop, do psicadelismo a marcas da cultura hippie, e passou a leste das atenções, o tempo acabando mais tarde por reconhecê-lo como uma primeira marca de afirmação de uma voz diferente entre os diferentes do seu tempo.
Francamente autobiográfico, traduz o ano “negro” vivido por Bowie entre 1968 e 69, da separação de Hermione Farthingale ao desfazer do relacionamento profissional com Ken Pitt, o seu primeiro manager profissional, da relação oportunista com Calvin Mark Lee (A&R da Mercury) ao calvário de audições por escritórios de editoras em busca de um novo contrato.
O fracasso comercial do álbum de estreia (bem como o dos singles gravados para a mesma editora) levaram Bowie a sair da Deram Records pouco depois, conseguindo um pouco mais tarde o manager Ken Pitt um novo acordo discográfico com a Mercury, através da etiqueta Phillips. Os tempos eram, entretanto, de mudança nos cenários em volta da música pop. Da ressaca das visões caleidoscópicas do psicadelismo de 1966 e 67 nascia uma nova vaga de atenções sobre heranças da cultura folk. E David Bowie (que na verdade não seguira os caminhos do psicadelismo que faziam a ordem do dia em 1967) era uma das vozes atentas aos cenários em mudança e, com o trio Feathers, formado em 1968, procurava outros horizontes para as suas novas canções, descobrindo na guitarra acústica uma presença com relativo protagonismo.
Depois de abordar George Martin, que declinou o convite para produzir o novo álbum de Bowie, Ken Pitt aproximou-se de Tony Visconti que aceitou o desafio, não se mostrando contudo muito entusiasmado pela canção que seria o seu cartão de visita e que já havia conhecido uma primeira versão – mais minimalista nos arranjos – para o filme promocional Love You Till Tuesday (essencialmente feito com canções do álbum de 1967). Explica-se assim a presença de Gus Dudgeon nos créditos daquele que, em julho de 1969, se apresentou como o décimo single de David Bowie e, pouco depois, lhe daria o seu primeiro êxito, ascendendo ao número 5 na tabela de vendas do Reino Unido. Com o título Space Oddity, tornar-se-ia, com o tempo, numa canção-assinatura de Bowie e é, ainda hoje, o seu single com maiores vendas no seu país de origem.
Inspirada pelo impacte que o filme 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, teve sobre si, a canção ganhou forma definitiva (embora tenha conhecido outras versões mais tarde) em sessões de estúdio registadas a 20 de junho de 1969, o single surgindo nas lojas de discos cerca de três semanas depois. Apesar de inicialmente ignorado pela BBC, Space Oddity foi escolhido pela estação para servir de banda sonora aos programas de cobertura da missão Apollo XI que, em julho de 1969, levaria pela primeira vez o homem à Lua. Essa foi de resto a primeira janela de grande exposição de uma canção que teria outras vidas em disco numa delas, por ocasião de uma reedição em 1975, tendo dado a David Bowie o seu primeiro número um no Reino Unido.
O sucesso finalmente obtido por David Bowie ao seu décimo single fez naturalmente de Space Oddity o seu primeiro grande cartão de visita à escala internacional. Em Itália a canção chegou mesmo a conhecer duas versões, assinadas por nomes como os Equipe 84 e The Computers. E crê-se que, talvez em resposta a estas versões, a editora local tenha optado por editar uma versão em italiano da canção. Com nova letra assinada por Mogol – transformando uma narrativa com ambientes sci-fi numa simples história de amor – Ragazzo Solo, Ragazza Sola foi gravado em dezembro de 1969 e lançado no formato de single em inícios de 1970. Houve também um artista francês a gravar (e editar) uma versão de Space Oddity, mas Bowie não repetiu a mesma estratégia em França.
Space Oddity, o álbum, é um disco de mais indícios de caminhos que de rumo concreto. Liberta-se da carga vaudevillesca do álbum de 1967 (apesar de manter um sentido de encenação teatral, como se escuta em Wild Eyed Boy From Freecloud), investe claramente em assimilações folk (citando Dylan como referência fulcral, notando-se ainda marcas de encanto pelos Beatles e de admiração por Marc Bolan), mas deixa a porta aberta a outras contaminações. Tematicamente é um disco de desencantos feitos canções, a separação de Hermione, a morte do pai (que não chegou a ver o filho a somar o primeiro êxito) e o desencanto pela filosofia hippie (evidente no longo e soberbo Cygnet Comitee). O disco firmou um relacionamento com Tony Visconti e contou, entre os músicos de estúdio, com o novato (e ainda desconhecido) Rick Wakeman no mellotron.
Na origem, quando editado pela primeira vez (em Novembro de 1969), mostrava por título David Bowie na sua versão inglesa e Man Of Words/Man Of Music na americana, tendo cabido à sua primeira reedição, via RCA, em 1972, o novo “baptismo” como Space Oddity, tomando o nome do single de sucesso que antecedera em alguns meses o lançamento do disco. E assim se passou a chamar.
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