Os filmes da Festa do Cinema Francês 2015
Texto: DIOGO SENO
“Voyage en Chine”, de Zoltan Mayer
Em França, uma mãe sabe da morte acidental do filho que já não via há anos, a quilómetros de distância, na China. O luto é complicado por esta distância, e pelos fantasmas de uma zanga profunda entre pais e filho. Não ficarão claras as razões da zanga, embora se venha a saber da relação complicada com o pai.
Zoltan Mayer vai mostrar o luto e a viagem de Liliane, de confronto com fantasmas do passado, como um terreno estranho ao quotidiano. A viagem à China é a viagem da mãe ao país onde o seu filho vivia, para trazer para casa o seu corpo. Uma viagem a um terreno geográfica, cultural e socialmente estranho. Mas é também uma viagem pelo espaço da dor e da perda que a personagem percorre. Ao entretecer ambas as dimensões, a do choque cultural com o choque da perda, o realizador sublinha de forma sensível a cisão que transforma a vida daquele que perde quem amou. A realidade, mesmo a do banal quotidiano, torna-se estrangeira e incompreensível. Talvez seja por isso que as imagens do filme mostrem a mãe e amigos de Christian muitas vezes atrás de vidros, de janelas, ou mesmo na semi-escuridão. O quotidiano que elas habitam é o mesmo daqueles que os rodeiam, mas a lente mudou, fracturou-se, e nele instalou-se uma estranheza. Também o périplo burocrático de Liliane para conseguir repatriar o corpo sublinha essa condição.
Nunca veremos Christophe, a não ser através de uma fotografia, e a sua ausência é sentida ao longo do filme. À medida que a mãe vai aprendendo sobre a cultura que apaixonou o filho, que vai conhecendo os seus amigos e a namorada, vai encontrando algum reconforto. Momentos ternos de partilha com os habitantes de Sichuan e com os amigos de Christophe, ajudam Liliane a encontrar-se, tal como o diário que escreve em forma de carta ao filho. Era ali que Christophe pertencia. Esta “aceitação”, primeiro do afastamento, depois da perda, é retratada de forma comovente por Yolande Moreau. Uma actriz graciosa, cuja calma dá à personagem força e dignidade. A luxuriante paisagem e os ritmos daquele lugar ganham vida através de uma composição visual cuidada, de planos longos e travellings acertados, imbuída de um sentido de lugar sem cair no pitoresco ou no ilustrativo, num filme modesto mas sóbrio e tocante sobre a perda.
“Mustang”, de Deniz Gumze Ergüven
A adolescência traz o despontar da sexualidade. É a este despontar que Mustang, primeiro filme de Deniz Ergüven, se entrega com energia e humildade. Longe dos estereótipos televisivos ou mesmo cinematográficos que a adolescência costuma suscitar, mas mesmo assim entregue a uma experiência reconhecível. Não se trata aqui de criar personagens, talvez a única irmã que ganha mais vida seja a mais nova, que é também a narradora pontual, e através da qual este universo desequilibrado e injusto é enquadrado. Trata-se antes de uma entrega a corpos com peso, a uma respiração, a da adolescência, no feminino, e num meio em que esta é sufocada pela rigidez dos costumes e pelo forte machismo. As irmãs de Mustang têm qualquer coisa das irmãs Lisbon, de The Virgin Suicides, e de resto, o tom luminoso e lânguido desta obra, muito deve à primeira fita de Coppola. Mas enquanto que na obra da realizadora americana a história era envolvida em mistério, aqui fica-se com os pés na terra, numa evocação sensorialmente rica, por vezes bruta, daquela aldeia da Turquia junto ao mar. É nesta fisicalidade que o filme começa, com as irmãs a saírem das aulas a correr para a praia, ou, a seguir, nas suas brincadeiras em casa. Ao prolongarem o seu contacto com rapazes, despertam a má-língua da vizinhança e os medos da família (avó e tio), que as castigam e vão submetendo, progressivamente, a um cada vez maior encarceramento caseiro. A liberdade de crescer e de explorar é-lhes tirada. São em vez disso sujeitas a rituais sociais e ensinamentos para as preparar para o casamento. É na parada de injustiças que se segue que o filme se vai tornar mais político. A força dos seus argumentos por vezes falha, talvez porque o que parece ser mais do interesse da realizadora é dar visibilidade às mulheres que são roubadas da sua liberdade, demonstrar o que significa essa perda, em vez de explicar as suas causas. Apesar de tomar algumas decisões narrativas menos ponderadas, o filme mantêm-se forte pela segurança da realizadora e a energia da sua visão, nomeadamente na criação de algumas imagens poderosas (as irmãs presas no quintal, com os pés pousados nas grades enquanto apanham sol, uma noiva na maca a ser analisada por um ginecologista após a sua primeira noite com o marido, com a luz a iluminar o vestido branco por dentro). Uma bela primeira obra, em que a fotografia capta com muita sensualidade as paisagens daquela aldeia turca, na qual as bonitas, fortes e vivazes irmãs são uma presença electrizante, com uma sequência final em que Istambul banhada em luz, e um abraço em close-up, ao som da emotiva banda-sonora de Warren Ellis, são as imagens assombrosas de uma esperança de mudança.
“Realité”, de Quentin Dupieux
É o quê, a realidade? No divertidíssimo último filme de Quentin Dupieux, é o nome de uma menina curiosa, e é também um jogo em que o realizador baralha constantemente as regras. Demiurgo, quiçá prepotente, corajoso e inventivo, Dupieux consegue aqui um truque de magia que confunde e surpreende. Uma história com uma série de narrativas paralelas a desenvolver-se num absurdo em crescendo. O mais impressionante acaba por ser o facto de ser uma obra bastante onírica sem recorrer aos motivos habituais. É um filme de luz, diurno. O absurdo das situações tanto perturba como deleita e faz rir, o que torna o truque mais fascinante. As narrativas paralelas começam numa aparente normalidade que vai sendo povoada por acontecimentos cada vez mais bizarros. As personagens irão cruzar-se, num filme de sobreposições, de um “realismo distorcido” e pontuado pelo absurdo, uma série de realidades paralelas que entram em colisão e interferem umas nas outras. À medida que este colapso vai acontecendo, o filme vai ganhando uma intensidade poética admirável. As ficções que uma personagem inventa na sua realidade tornam-se realidade, e nessa realidade, o que é inventado é a realidade que a inventou. Confuso? Sim, mas é aí que está todo o fascínio do filme, uma caixinha de surpresas, auto-consciente e referencial (Dupieux percebe o que está em jogo neste cinema que pretende fazer e não se coíbe de brincar com os próprios limites do seu edifício) que se vê em constante maravilhamento.
“Vincent n’as pas d’écailles”, de Thomas Salvador
Começemos pelo título: “Vincent não tem escamas”. Este título instala o filme no terreno dos contos infantis e das fábulas, e o realizador cria aqui um modesto drama adulto a partir do universo efabulado da sua história. Vincent é um homem tímido, magro, desajeitado e lento, que encontramos no início do filme a tentar encontrar o seu lugar. Vincent tenta passar despercebido, pois tem um superpoder: dentro de água, ou quando molha totalmente o seu corpo, ganha uma força sobre-humana, torna-se um super-herói. Thomas Salvador, realizador e protagonista, vira o género saturado dos super-heróis de cabeça para baixo, construindo uma obra despojada, cujo minimalismo narrativo e visual é um contraponto aos filmes de super-heróis habituais. Este contraste com esses filmes dá-se não só pelo despojamento, como pelo reenquadramento do herói. Não há aqui mitologias fundadoras, vilões, ou um mundo para ser salvo. Vincent apenas quer ser deixado sozinho, livre para poder nadar (grande parte das cenas decorrem dentro ou à beira de água). Quando conhece uma rapariga numa festa, a relutância inicial em avançar dá lugar a uma descoberta terna da aceitação da diferença, e mostra-se como pode ser dessa diferença que nasce a atracção e a paixão. Vimala Pons, a actriz que dá vida ao interesse amoroso de Vincent, representa com uma enorme naturalidade, dando ao filme umas quantas cenas de desarmante ternura. Lá mais para o fim, os poderes de Vincent acabam por ser descobertos, e segue-se uma cena de perseguição que, apesar de longe do tédio das explosões de um blockbuster, e não obstante o charme de alguns momentos que a aproximam do prazer físico de alguns filmes mudos, é demasiado longa.
“Lolo”, de Julie Delpy
Começa tudo bem, num tom leve e descomprometido. Delpy, a estrela do cinema europeu, realizadora do filme, e protagonista também, a interpretar uma mulher cosmopolita, Violette, directora de desfiles de moda, de férias em Biarritz com a sua atrevida melhor amiga, interpretada por uma cáustica Karin Viard. É lá que conhece um homem da sua idade, Jean-René, um “parolo” com o qual pretende apenas divertir-se, interpretado pela estrela do cinema francês mais “popular”, Dany Boon. Um encontro improvável que, com a continuação do affair e a mudança para Paris das personagens, começa a descambar, indo parar a um buraco de lugares-comuns. Lolo é o filho único de Violette, um pretensioso rapaz de vinte anos, com tiques de estrela de rock e aspirações de artista, que irá fazer tudo o que pode para se intrometer na relação da mãe com Jean-René. Será deste confronto, assente em premissas edipianas, embaraçosamente explicitadas, que a realizadora tentará extrair a maior parte das situações cómicas, todas elas óbvias, numa linguagem cinematográfica pobre. Apenas as aparições breves de Karin Viard, ao longo do filme, lembrarão a relativa graça com que tudo se iniciara em Biarritz. Sem perceber o potencial cómico da sua premissa, com os actores confrangedoramente limitados a interpretar clichés, Delpy acaba por assinar uma obra desinspirada e que fica aquém dos talentos envolvidos.

Eu por acaso gostei muito de ver Lolo: 4*
“Lolo” é um filme bastante divertido e com muitas peripécias, personagens peculiares e momentos inesperados.
Cumprimentos, Frederico Daniel.
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