O novo disco de Laurie Anderson é um companheiro do seu filme “Heart of A Dog”, juntando uma seleção das narrativas e cenografia áudio, numa cativante experiência ‘spoken word’.

Há um ano, quando nos visitou pela última vez (desta vez para uma sessão de entrevista e histórias contadas perante uma plateia cheia, durante a edição 2014 do Leffest), ficou claro perante os que ali estavam que não é preciso haver instrumentos num palco nem mesmo um programa preparado de antemão para que um serão com Laurie Anderson seja absolutamente compensador. Basta ouvi-la falar. Pelas histórias que conta, o modo como junta as palavras e as ideias e, naturalmente, aquela voz que sabe que tem uma cadência, uma forma de acentuar, de interpretar… Como se de música sem música se tratasse. Curiosamente entre as histórias que ali contou estava já uma habitada por cães. Falava, em concreto, de um concerto para cães, ao qual, em vez da lógica habitual (a que leva o dono a fazer-se acompanhar pelo seu cão), eram eles, os que ladram, os protagonistas. O concerto era para eles. E os donos limitavam-se a ir atrás, acompanhando-os.

Este ano regressa ao mesmo festival com outra história com cães. Trata-se de Heart of a Dog, o seu primeiro filme desde o aclamado Home of The Brave, que serve de registo feito de imagens e sons dos caminhos que a sua música tomava em meados dos anos 80, quando a sua discografia começava a ganhar volume e fôlego.

O tempo passou e, apesar dos vários projetos a que se mantém ligada – um dos mais recentes unindo-a ao Kronos Quartet – o ritmo a que chegam as suas edições discográficas tornou-se mais lento nos últimos 20 anos e Homeland, o seu mais recente disco, data de 2010. Heart of a Dog não é exatamente um novo projeto discográfico. Nem representa a sua primeira experiência num terreno spoken word, no qual concebeu The Ugly One With The Jewels, editado em 1995. Este novo disco traduz, de resto, parte do corpo do próprio filme. Não se trata de exatamente de uma banda sonora no sentido habitual com que usamos essa expressão quando referimos a música usada em cinema (deveríamos aí usar antes a designação “banda musical”, mas outra expressão “banda sonora”, que na verdade refere todo o som no filme, acabou por tomar o seu lugar). Heart of a Dog é, de facto, uma seleção de elementos da “banda sonora” do filme. Ou seja, junta a voz de Laurie Anderson, relatando as suas histórias, frequentemente sobre cenários que revelam uma sonoplastia que cruza efeitos, cortinas criadas por sintetizadores, viola amplificada e, ocasionalmente, elementos de outras gravações anteriores (aqui juntando contribuições colhidas nas obras de Antony Hegarty ou Lou Reed).

Se bem que os cães sejam aqui os protagonistas – da história emocionante de Lollabel, que “aprendeu” a tocar piano ou dos cães treinados para as forças de segurança – em Heart of a Dog há ainda uma dimensão pessoal que fala de memórias de vida e de morte, assim como uma face política que capta marcas do tempo em que estas narrativas ganham forma, da morte de Bin Laden ao 11 de setembro (data que ficara fixada já na sua discografia em Live in New York (2002), gravação de um concerto realizado no Town Hall, em Nova Iorque, dez dias após os atentados, recordando um alinhamento que cruzava então peças de álbuns como United States, Big Science ou Home of The Brave, com memórias e reflexões recentes do que sucedera.
Em Heart of a Dog efeito “spoiler” que o disco exerce sobre o filme é evidente. Por isso, para os interessados, nada como uma visita à sala escura, para ver estas histórias com as imagens às quais pertencem. Depois, acreditem, estas narrativas, apenas de ouvir, sobrevivem por si.

Laurie Anderson
“Heart of a Dog”
Nonesuch / Warner Music
4 / 5