A diva desafinada
Texto: NUNO GALOPIM
No fim de uma festa de recolha de fundos para os veteranos da guerra, depois de uma série de árias por vozes seguras e, apresentada entre um rol de elogios por uma senhora de roupas, gestos e palavras chiques, a responsável pelo evento (ou seja, a que abriu os cordões à rica bolsa para a caridade cara ali acontecesse naquela tarde) entra em cena para cantar. Mas não há uma frase que não saia desafinada, a sua voz revelando uma total ausência de capacidade para o canto, o ouvindo não dando conta do que se passa, a ilusão de que tudo correra magnificamente, uma vez mais, àquela diva que cantava habitualmente entre amigos, sendo uma vez mais renovada pelos aplausos gerais da sala (numa ao lado, houve quem se refugiasse, porta fechada, para não ter de a voltar a ouvir). É assim, deixando logo evidente que não se trata de uma comédia sobre uma cantora desafinada (muito desafinada), mas antes do retrato do desencanto quase solitário de uma mulher que sonha pela música as ligações a uma vida sem dramas na conta bancária mas, de resto, em tudo vazia. Um retrato ao qual o realizador Xavier Gianolli não deixa de chamar a relevante presença dos que a rodeiam, já que são eles, mais do que ela, a verdadeira fonte do equívoco que é o seu canto.
Margerite começou a nascer quando o realizador descobriu a figura de Florence Foster Jenkins, uma socialite norte-americana hoje lembrada pela sua atroz incapacidade em cantar, todavia fixada numa ilusão de ser uma diva da música numa carreira que ela mesma financiou nos dias da Belle Epoque, e cuja vida Stephen Frears levará brevemente ao cinema, num filme com Meryl Streep à frente do elenco. Tal como Florence Foster Jenkins ou até mesmo, com as devidas diferenças, a portuguesa Natália de Andrade, Margerite vive o sonho de um canto que não domina. Pelo menos segundo as normas já que um poeta dadaísta nela encontra, entusiasmado, um tom verdadeiro e subversivo que chega mesmo a levar a uma performance na qual a convida a cantar uma Marselhesa (desafinada, claro) sob projeções de imagens de guerra. Uma performance artisticamente consequente para os padrões do seu curador. Mas que, entre o círculo de “amigos”, os mesmos que até aí a aplaudiam, gera desconforto. Ou seja, lá cantar mal a malta tolera, até porque os croquetes são bons e o champanhe, que é caro, também… Mas isto de fazer cenas de rebeldia para além do que e elite tolera é que desafina a coisa.
E é aí, ao desviar claramente o filme do que poderia ser ou uma caricatura de um talento inexistente ou o mero drama de uma vida toldada por ilusão criada ao seu redor, que Xavier Gianoli começa a juntar ingredientes narrativos que acrescentam maior profundidade de campo à vida que se desenrola frente aos nossos olhos. A ousadia do ativista, a reação intolerante da elite e o questionar do papel do crítico (na forma de um jovem que aceita entrar no jogo, aprofundando a ilusão da protagonista) enchem de vida e sentido um filme que trabalha igualmente bem as personagens, seja o marido que está farto de ouvir “zurrar” a mulher e procura fuga extraconjugal, um empregado dedicado (tanto até, que não esconde uma secreta paixão pela patroa), uma jovem cantora vocalmente talentosa mas decidida a aliar-se aos novos (mas menos famosos) compositores ou um cantor em curva descendente que veste a farda do círculo que mantém firme a ilusão perante um desafio que tudo pode fazer desmoronar: um concerto público.
Uma segura (e clássica) art direction, que serve a inscrição da narrativa e personagens algures em França, nos tempos que se seguiram à I Guerra Mundial, uma arrumação clara da narrativa – que é inclusivamente dividida em capítulos – e uma dose suave de momentos de canto ajudam a fazer de Marguerite uma das boas surpresas deste trimestre final de 2015.
“Marguerite”, de Xavier Gianolli, com Catherine Frot, André Marcon, Denis Mpunga, Michel Fau e Christa Teret, está disponível em DVD numa edição da Alambique Filmes

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