Como Sam Mendes deixou a sua marca em James Bond
Texto: NUNO GALOPIM
Ficaremos a perder se Sam Mendes não der o dito por não dito. E a verdade é que, depois de uma estreia convincente em Casino Royale e de um tropeção (afinal inconsequente) em Quantum of Solace, foi ao encontrar Sam Mendes na cadeira de realização que o James Bond vestido por Daniel Craig alcançou a sua dimensão maior, criando mesmo um novo paradigma para a série, definindo caminhos de diálogo entre todas as suas heranças e um presente no qual o agente 007 continua a viver. Estreado em 2012 Skyfall foi mesmo o melhor filme de James Bond em muitos anos, representando a continuação de Sam Mendes a bordo deste universo um elemento fulcral para o solidificar, num segundo filme, de tudo o que ali começara a ganhar forma. E agora, ao vermos Spectre, compreendemos a força que este díptico acaba por ter ao garantir a James Bond um seguro de vida que lhe abre largos horizontes pela frente. Aos 53 anos de vida no cinema, o agente teve neste par de filmes um dos mais sólidos conjuntos de episódios de toda a sua história. E, sim, Spectre é tão bom como o foi o amplamente elogiado Skyfall.
Os dois filmes funcionam em diálogo entre si, revelando ainda uma relação muito próxima com ecos diretos dos outros dois que Daniel Craig antes tinha protagonizado, estabelecendo relações claras no afirmar da identidade central da série ao convocar todo um conjunto de heranças da mitologia bondiana, do confronto com a organização Spectre – que logo desde Dr. No (1962) entrou na vida de James Bond – a um modelo de perseguição fantástica envolvendo veículos um pouco fora da sua “zona de conforto”, não esquecendo um renovar completo do quadro de personagens mais clássico, com novos atores a fixar em si as figuras de M (Ralph Fiennes), Q (Ben Whishaw) e Miss Moneypenny (Naomie Harris).
Contudo, e tal como sucedera em Skyfall, este conjunto de referências centrais à mitologia bondiana, são apenas parte de um todo habilmente construído logo desde a etapa da escrita do argumento. Em comum com o filme de 2012 este novo Spectre retoma fantasmas do passado de James Bond como ecos que ressoam perigosamente no seu presente. Mas junta novos elementos à trama ao retomar um tema igualmente caro a James Bond – a necessidade de lutar contra decisões políticas ligadas à gestão dos serviços secretos – mas desta vez enfrentando ordens de fusão de organismos e de troca de toda uma rede de agentes por drones (consequência de vontades superiores em encolher despesas) que levam um gestor ambicioso, com experiência de gabinete, disposto a tudo para garantir a unanimidade de votos entre serviços de vários países que lhe permita estabelecer uma rede internacional de vigilância, vincando assim a narrativa um tempo de medo e de obsessão securitária em que vivemos.
Não vou, propositadamente, falar do mau-da-fita… Já toda a gente sabe que é interpretado por Christoph Waltz, sendo de supor (logo pelo título do filme), que estará ligado à Spectre… Que relação terá com outros vilões, como veste o papel e que mais segredos guarda é coisa para ver no ecrã e não para ler num texto publicado em tempo de estreia do filme. Quem quiser ler spoilers que os procure… E certamente encontrará. Mas não aqui.
Se a canção, na voz de Sam Smith, formatada aos modelos impostos pelos concursos de “talentos” televisivos, é das coisas piorzinhas que a música alguma vez deu a James Bond (e atenção que não é o facto de ter alcançado o número um no Reino Unido, nem o Óscar ganho recentemente, que faz de Writings On The Wall uma grande Bond song), já a bela partitura orquestral de Thomas Newman junta, mais ainda do que em Skyfall, argumentos em favor da era Sam Mendes por estes lados.
Spectre é mais vitaminado em momentos de ação do que Skyfall, mas funciona em tudo como um complemento direto do que ali sucedera, havendo mesmo todo um conjunto de linhas que sugerem um encadeamento cronológico entre factos e imagens que vemos nos dois filmes. Em conjunto Skyfall e Spectre estabelecem normas pelas quais as narrativas deverão continuar a evoluir, vincando como uma integração inteligente e consequente do passado é fulcral para a sobrevivência (e de boa saúde, acrescente-se) de um agente secreto que já vai com mais de meio século de histórias levadas ao grande ecrã.
É bem provável que Daniel Craig se mantenha ainda a bordo (e espero que o faça, pois aqui volta a mostrar-nos que é um dos melhores Bond de sempre). Mas depois do nível atingido do pensar na realização e até mesmo da imagem a que nos habituou Sam Mendes – que aqui não repete a excelência visual da sequência em Shangai mas tem momentos brilhantes, como o são o plano de sequência que abre o filme, a perseguição em Roma ou uma forma de, pela fotografia e art direction, sugerir as diferenças de cenário e geografia – a sua eventual substituição vai exigir aos produtores um esforço acrescentado. E optar por um fazedor de filmes de toca-e-foge, habituado a muita velocidade e cenas incríveis não bastará. Sam Mendes juntou a James Bond uma dimensão autoral e um saber inteligente na gestão dos ritmos com os quais a narrativa se desvenda… A solução era simples: convencer o realizador a ficar. Afinal, temos a memória do consulado de John Glenn que, nos anos 80, assinou todos os filmes entre 007: Missão Ultra-Secreta (1981) e 007: Licença para Matar (1989)…
Agora, na hora de reencontrar o filme em suportes de home video, vale a pena destacar, no menu de extras, uma pequena incursão “making of” pelos bastidores da criação da sequência de abertura, rodada na Cidade do México, recriando um “dia dos mortos”. Do trabalho de produção capaz de garantir a preparação dos cerca de mil figurantes entre as quatro da manhã e a hora de Sam Mendes dizer “acção!” e a forma como as várias equipas estudaram o lugar de modo a preparar a deslocação da câmara e o movimento das pessoas que surgem em campo, a janela dá conta de quão importante é, de facto, o investimento técnico, financeiro e, no fim, narrativo e visual, na abertura de um filme de James Bond…
“007: Spectre”, de Sam Mendes, com Daniel Craig, CHristoph Waltz, Léa Seydoux, Ralph Fiennes, Ben Whishaw, Naomie Harris e Monica Bellucci, está editado em DVD e Blu-ray pela NOS.
Boa análise de Nuno Galopim. Pessoalmente achei Spectre uns furos abaixo de Skyfall. Os primeiros 2/3 entusiasmam, pelas auto-referências e pelo entusiasmo e propulsão da narrativa mas achei que a recta final, que também não vou estragar, emaranhou os procedimentos com uma série de constrangimentos narrativos para “forçar” o final. Podem ler a minha retrospectiva integral do James Bond e poderão ouvir em breve a minha análise a Spectre em http://www.segundotake.com.
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