Triunfo, mas só na segunda parte
Texto: NUNO GALOPIM
Não há nada de errado (antes pelo contrário) no facto de uma figura com obra nascida e edificada nos espaços da música popular se aventurar nos territórios dramática, narrativa e musicalmente de maior fôlego da ópera. Assim como o percurso no sentido oposto é igualmente um mundo de potencialidades onde a surpresa pode superar expectativas, como o mostrou Philip Glass em já diversas ocasiões, o fez John Tavener quando chamou a voz de Björk a uma obra sua ou o tem mostrado Nico Muhly nas (muitas) colaborações que tem mantido junto de vários projetos e bandas nos mais diversos azimutes da criação musical. De resto, além de algumas obras notáveis recentes de compositores como John Adams, Kaaja Saariaho ou Thomas Adès, o mapa recente do mais interessante que o mundo da ópera nos deu a ouvir depois do ano 2000 passa necessariamente por Tomorrow in a Year, criação da dupla eletrónica sueca The Knife. E há que notar que as incursões de Damon Albarn por estes terrenos, em Monkey: Journey to the West ou Dr. Dee, são expressão de desafios consequentes que transcendem o espaço habitual da sua composição pop. Mas entre as óperas dos The Knife e de Damon Albarn surge logo a evidência do equívoco que mina, desde a origem, este Prima Donna de Rufus Wainwright, já que, ao invés de procurar aqui expressar novos caminhos e visões, mais não faz do que, sob algum anacronismo (que por si pode não ser um mau argumento), revisitar modelos, assimilando formas e soluções que, entre evocações da ópera romântica e algumas tendências recentes em espaço pós-minimalista, na verdade não acrescenta nada realmente marcante a uma obra que, é preciso dizê-lo, representa uma das mais notáveis expressões autorais de um cantautor da sua geração.
A ideia da revisitação não é de todo nova em Rufus Wainwright. E quando levou a cena a recriação de um concerto célebre de Judy Garland deixou claro quão cara é à sua identidade essa capacidade de, mais do que citar, integrar as referências que o estimulam na sua própria obra. Canções como as que gravou do díptico Want ou no subsequente Release the Stars revelavam já, de resto, todo o fulgor de ambição sinfonista, com uma carga orquestral que ele mesmo reconhecera desde sempre ser herança natural de uma paixão antiga pela ópera.
Em Prima Donna o que fez não foi contudo o integrar dessas referências na sua música. Mas, antes, fazer da sua música uma expressão mais próxima dessa (legítima) paixão, criando uma ópera que, mesmo pontuada aqui e ali por belíssimas árias – como o são Dans Ce Jardin Flori ou Les Feux d’Artifice t’Appellent –, não representa um verdadeiro contributo inovador nem à sua obra como autor nem à da ópera do século XXI.
O que há de mais interessante em Prima Donna, para além de uma ou outra ária – que resultam mesmo assim muito melhor em canção, na sua voz, como o ouvimos depois na segunda parte do concerto –, é sobretudo a abordagem temática, levando a ópera a falar do seu universo, das suas personagens e relações para além do espaço do palco… Este, sim, é um interessante espaço de reflexão.
O que vimos na Gulbenkian não foi nem uma produção da ópera nem mesmo uma versão de concerto. Mas, antes, um “concerto visual sinfónico” no qual, antes de mais, há que destacar o papel impecavelmente cumprido pela maestrina Joana Carneiro e uma Orquestra Gulbenkian em grande forma (com uma nova expressão da sua rara versatilidade na bem mais suculenta segunda parte). Em palco orquestra e três cantores – Sarah Fox, Kathryn Guthrie e Antonio Figuera – interpretaram uma versão condensada de Prima Donna que omitiu infelizmente a abertura do primeiro ato, um dos mais inspirados momentos da obra. Ao fundo do palco era projetado um filme de Francesco Vezzolli que, mesmo contando com a brilhante Cindy Sherman a vestir uma expressão da ideia da personagem protagonista, não foi nunca mais do que um inerte cortinado com imagens em movimento, incapaz de acrescentar verdadeiros novos pontos de vista à música que se escutava em palco. E lá se passou, sem que ficasse na história, a primeira parte.
Mas felizmente houve uma segunda. E aí, magnificamente acompanhado pela Orquestra Gulbenkian, Rufus mostrou (com novos arranjos) como uma certa dimensão operática habitava já canções suas como This Love Affair, Oh What a World ou Going to a Town, mostrando a Lisboa o melhor de todos os alinhamentos que apresentou nas já significativas passagens que fez por palcos da cidade. Estava “em casa”, juntando os dons de entertainer que há muito lhe reconhecemos num palco diferente que, agora, era claramente afinado segundo as suas linhas. Fez adendas ao programa quando, por exemplo, interpretou, apenas acompanhado ao piano, a ária Les Feux d’Artifice t’Appelent da ópera escutada na primeira parte (numa versão que ele mesmo gravou em All Days Are Nights: Songs for Lulu) ou, já num dos três encores, chamou a cena os cantores que tinham interpretado as personagens de Prima Donna, para uma espantosa versão de Hallelujah, de Leonard Cohen. O tom informal do serão foi sobretudo acentuado na segunda ocasião em que chamou a cena Sarah Fox para, com ela (mas mantendo ele o seu registo vocal habitual), interpretar uma ária de L’Amico Friz, de Pietro Mascagni, assinalando não só mais uma ponte de diálogos entre a pop e a ópera, como garantindo, pela inesperada coreografia, “lançando flores”, uma das maiores gargalhadas da noite.
A mais interessante surpresa, já que a dimensão sinfonista das canções era coisa não tão difícil de antever, coube a um destapar do que será o seu próximo projeto para a Deutsche Grammophon: um disco de canções baseadas em sonetos de Shakespeare, do qual escutámos A Woman’s Face. E aí, tal como nas canções pop, convenhamos que Rufus Wainwright conduziu os acontecimentos a um outro patamar de satisfação.
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