Portugueses vítimas do Holocausto: a cada um a sua história
Texto: HELENA BENTO
Seria possível que, de todos os prisioneiros que passaram por Auschwitz, vindos de tantos países, nenhum fosse português? Foi esta a pergunta que serviu de mote a uma investigação que levou Patrícia Carvalho, jornalista do Público, a percorrer Portugal e a visitar campos de concentração (Auschwitz, Dachau, Buchenwald, Ravensbrück, Bergen-Belsen), arquivos e bases de dados em Portugal e noutros países, e familiares das vítimas em França, Alemanha e Polónia. Publicada em 2014 no Público, a reportagem, vencedora do prémio Melhor Reportagem Ciberjornalismo, foi agora publicada em livro, numa versão mais ampla (ed. Vogais). Ao contrário de outros trabalhos sobre este período, que abordaram a realidade dos judeus de ascendência portuguesa, a investigação realizada para este trabalho centrou-se em pessoas efetivamente nascidas em Portugal, ainda que depois se tenha naturalizado francesas ou vivido grande parte das suas vidas fora de Portugal, esclarece Patrícia Carvalho numa das primeiras páginas do livro.
Quando a jornalista do Público investigava as origens de Günther Rigent, um rapaz que teria 12 anos quando a guerra terminou e que estava registado como português no ITS – Internacional Tracing Services (que reúne toda a documentação relativa aos campos de concentração nazis, na Alemanha), apesar de não ter nome português e os serviços britânicos garantirem que a sua mãe era polaca, a investigadora que a auxiliava na pesquisa mostrou-se surpreendida pelo interesse da jornalista. “Estou aqui há 20 anos e nunca tive um inquérito feito por Portugal”. Susanne Urban, diretora do Departamento de História e Educação do ITS, confirmava a quase inexistência de contactos portugueses, justificando a ausência de solicitações com o facto de os portugueses não conhecerem o ITS e, em particular, o tópico da perseguição de portugueses pelos nazis. A então diretora do instituto, Rebecca Boheing, também tinha essa opinião: “As pessoas muitas vezes pensavam: ‘Bom, Portugal não esteve diretamente envolvido na guerra, por isso é claro que não há vítimas portuguesas’. Mas as pessoas movimentavam-se muito e Portugal, claro, tem o seu próprio passado difícil”.
A investigação de Patrícia Carvalho vem, assim, introduzir novos e importantes elementos de reflexão nos estudos sobre o Holocausto e o regime nazi, destacando-se como a investigação das investigações (que continuam a ser poucas ou até inexistentes) sobre os prisioneiros portugueses, desenvolvida com “diligência” e “minúcia” tais, que dificilmente poderá ser ultrapassada, como chama a atenção o crítico António Guerreiro num texto publicado no jornal Público. Ao fim de décadas e décadas de silêncio, os nomes dos portugueses que passaram por campos de concentração, e as suas histórias, não poderão mais ser esquecidos.
Patrícia Carvalho identificou 49 portugueses que foram deportados de França para campos de concentração e um que teve o mesmo destino, mas a partir da Bélgica. Em 1940, assinado o acordo que punha fim às hostilidades alemãs contra a França, Bélgica, Holanda e Luxemburgo, decorrentes da Primeira Guerra Mundial, e dividia o território francês em dois, os alemães confiscaram o conhecido complexo de Royallieu, situado na cidade de Compiègne, a cerca de 60 quilómetros de Paris, para ali internarem prisioneiros franceses e britânicos. Um ano depois, as SS instalaram um campo de internamento e de trânsito no local e Royallieu-Compiègne haveria de se transformar no mais importante local de deportação dos opositores do regime colaboracionista de Vichy, rendido às tropas alemãs, explica Patrícia Carvalho. Foi de lá que partiram milhares de políticos e membros da Resistência, judeus e outros criminosos de delito comum em direção aos campos de concentração. Um monumento erguido no exterior do campo lembra que ali foram “internados, deportados e fuzilados, entre julho de 1941 e agosto de 1944, 53 mil homens, mulheres e crianças vítimas da Alemanha Nazi”. Pelo menos oito dos transportes que deixaram Compiègne rumo aos campos de concentração levavam portugueses, num total de mais de 30 pessoas.
Maria Barbosa (ou Mariette, como era tratada em França), nascida em 1922 em Vilar das Almas, Ponte de Lima, foi uma dessas pessoas. Detida a 10 de janeiro de 1944, quando se encontrava na casa de um amigo ligado a uma rede resistente comunista, Maria Barbosa foi levada para uma prisão em Lyon e de lá transferida para Compiègne. De Compiègne foi deportada para Ravensbrück, um campo criado exclusivamente para mulheres – tendo depois sido ocupado também por homens e exterminadas milhares de pessoas em câmaras de gás ou vítimas de experiências médicas, fome e doenças – e dali transferida para Neuengamme e Bergen-Belsen, que, “para muitas pessoas, é ainda mais poderoso como sinónimo do horror nazi do que Auschwitz”, escreve Patrícia Carvalho.
Maria Barbosa sobreviveu a Ravensbrück e às muitas provações por que passou às mãos dos nazis. Morreu em 2008. O marido dela contou à jornalista do Público que Maria evitava falar quando via documentários sobre o Holocausto na televisão, mas que dizia sempre: “Estão longe da verdade”. Era também isso que dizia Luiz Ferreira, deportado para Buchenwald em 1944, quando via filmes que pretendia retratar o Holocausto, contou a sobrinha, Amélia Martins, que é quem guarda o seu espólio. A realidade fora “muito pior”, repetia ele. Buchenwald, começado a construir em 1937, em Ettersberg, perto da cidade alemã de Weimar, acabaria por tornar-se o maior campo de concentração na Alemanha. Estima-se que ali tenham morrido cerca de 56 mil pessoas. Maria e Luiz sobreviveram à guerra e os seus familiares continuam a manter vivas as suas memórias. Outros portugueses (e não só) não tiveram o mesmo destino, e muitos aguardam ainda a oportunidade de lhes vir a ser dado um nome e uma história.
No campo de concentração Dora em Nordhausen, parece que, infelizmente estiveram portugueses.
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